Catalunha, ‘Françalemanha’ e soberania europeia
Numa Europa que precisa de aproveitar este momento histórico para refundar-se, a questão catalã, tal como tem sido enfrentada, ameaça tornar-se um novo factor de irracionalidade e desintegração. Não há soberania nacional sem soberania europeia.
Depois das eleições de hoje na Alemanha, que Angela Merkel deverá vencer confortavelmente, embora esteja em aberto com que parceiro (s) irá governar, segue-se a grande questão: qual vai ser o futuro da Europa, essa Europa tão pouco debatida na campanha eleitoral pelos principais actores políticos alemães? Com as agendas europeias dos governos da União congeladas, à espera dos resultados destas eleições, nem Merkel nem Schulz quiseram antecipar expectativas e compromissos. Apenas o Presidente francês, Emmanuel Macron, foi mais incisivo e voluntarioso, prometendo avançar com uma "guia de marcha" que irá propor aos seus parceiros europeus. Conforme afirmou no seu discurso em Atenas a 7 de Setembro passado, "será preciso uma Europa na qual ousemos de novo defender a convergência social, fiscal, porque é isso que nos mantém unidos, e evitar as divergências que nos separam. Será preciso reencontrar o sal desta zona euro e inventar uma governação forte que nos tornará soberanos, com um orçamento da zona euro, com um verdadeiro responsável executivo desta zona euro, e um Parlamento da zona euro perante o qual deverá prestar contas".
Voluntarismo excessivo? É o que se verá de seguida. De qualquer modo, sem uma reactivação do motor franco-alemão – a ‘Françalemanha’, como lhe chama Le Point –, o futuro da União parece não apenas problemático mas também quase insustentável. É o que acontecerá, porém, se Merkel e o(s) seu(s) futuro(s) aliado(s) governativo(s) não despertarem para a evidência de que está em causa a soberania da própria Europa – sem a qual, no mundo de hoje, ficaremos reféns da teia caótica dos poderes de Trump, Putin e quejandos – ou que a defesa das soberanias nacionais implica a construção dessa soberania supranacional, europeia. Foi precisamente isso que Macron sublinhou em Atenas e é essa locomotiva política que nos falta, para enfrentarmos os desafios de uma ordem mundial em risco de colapso, depois de termos vivido a crise económica e existencial que culminou no Brexit. Já não há espaço na Europa para cada um fechar-se sobre si próprio, no interior das fronteiras de um nacionalismo cego, como tem acontecido em alguns países do Leste europeu.
Ora, é em contraponto e contracorrente à ‘Françalemanha’ ou ao cenário de uma soberania europeia que ressurge hoje a questão catalã. Para além do reconhecimento dos seus legítimos direitos nacionais historicamente asfixiados pelo centralismo castelhano – que Portugal também sofreu –, a Catalunha corre o risco de se tornar palco de um confronto anacrónico e sem solução razoável para nenhuma das partes nele envolvidas, como se tem visto, aliás, com as atitudes do Governo madrileno e das forças independentistas.
Quer a forma atrabiliária como o referendo foi convocado, com cenas caricatas e indignas da seriedade da reivindicação – como se viu no parlamento da Catalunha –, quer as reacções mesquinhas e de um autoritarismo anedótico do poder central, desqualificam os contendores e abrem caminho a um conflito muito perigoso, em que todos arriscam perder a face e a razão. A um centralismo desprovido de visão histórica – que não foi capaz de prevenir as tensões que poderiam ter sido oportunamente superadas através de uma revisão constitucional feita à medida de um moderno modelo federal do Estado das Autonomias – contrapõe-se, do outro lado, um provincianismo separatista caduco, avesso à dimensão europeia do cosmopolitismo catalão que nos habituámos a celebrar e até a invejar.
Numa Europa que precisa de aproveitar este momento histórico para refundar-se – ou, em contrapartida, consumir-se numa agonia sem fim –, a questão catalã, tal como tem sido enfrentada, ameaça tornar-se um novo factor de irracionalidade e desintegração. Não há soberania nacional sem soberania europeia.