Um filme que recusa dogmas e acredita nas possibilidades
E se fosse este o grande filme sobre a crise nacional? Obra-prima, Fábrica de Nada? Estamos convencidos que sim.
E se – talvez por não se anunciar como tal e por nos estar a apanhar todos de surpresa – o grande filme sobre a crise nacional não tivesse sido o tríptico de Miguel Gomes As Mil e Uma Noites, mas antes esta Fábrica de Nada que o colectivo da Terratreme, sob a condução de Pedro Pinho, foi buscar a Jorge Silva Melo, à escritora holandesa Judith Herzberg e às vidas quotidianas dos empregados da Fatileva? Não se trata, atenção, de minimizar um por relação ao outro – até porque as estratégias de partida, alimentando a ficção a partir da realidade, e os resultados, que desafiam conceitos de formatação, não estão muito distantes. Mas existe uma mais-valia de brevidade e coerência na Fábrica de Nada, três horas com um único fio condutor que passa todo o tempo com aqueles cuja história conta, por oposição à estrutura episódica, digressiva, estilhaçada das nove horas das Mil e Uma Noites.
Sobretudo, o “realismo mágico” em que Pedro Pinho mergulha a sua história da resistência de um grupo de operários, em luta pela sua dignidade de pessoas numa sociedade onde o conforto e a alienação ganham aos pontos aos valores, desenha uma possibilidade de utopia colectiva muito mais pragmática: responder ao bottom-line puramente valorativo do capitalismo com a riqueza do humanismo que defende que todos temos uma palavra a dizer, que o trabalho não é apenas uma troca de tempo por dinheiro mas algo que pode enriquecer quem o faz e quem dele usufrui. E se isso implicar estatelarmo-nos ao comprido, paciência – já dizia Beckett para “tentarmos, falharmos, falharmos outra vez, falharmos melhor”.
A Fábrica de Nada é, então, um filme-ensaio, e um filme de ensaios. Não de ensaios teóricos - que também existem, nas discussões que se vão tendo entre os operários e entre os intelectuais, no questionamento constante sobre a validade do que se está a fazer. Mas ensaio no sentido de tentativa e erro, de ensaiar caminhos e saídas, na vida pessoal como na vida profissional, no cinema como na vida real. Uma fábrica abandonada pelos donos que já não têm como dela sugar mais dinheiro, ocupada pelos operários para quem ela é a única hipótese de sobreviver com um mínimo de dignidade, torna-se num espaço de possibilidades improvisadas. Pode ser um descampado para futeboladas ou um palco de musical industrial (não queríamos realmente falar do Dancer in the Dark de Von Trier, mas não se lhe pode mesmo fugir), passando por pano de fundo para o filme de denúncia social (e o Crime do Sr. Lange de Renoir está sempre ali à porta).
Essas possibilidades também se abrem e fecham para cada uma das suas personagens, indecisas entre partir ou ficar, continuar a acreditar numa utopia laboral ou ceder às pressões patronais, acreditar na possibilidade do colectivo ou recusar a inacção solidária. O filme explora-as a todas com eles, inventa-se e reinventa-se constantemente, um passo em frente dois para trás três para o lado, em constante metamorfose entre o político e o pessoal, o íntimo e o público, com uma sofreguidão de ficção e realidade, tradição e modernidade, que se intercalam, intervalam e alimentam até já não sabermos onde termina uma e começa a outra. Acima de tudo, Pinho assina um filme feito hoje, que fala de hoje, mas que não quer ficar preso ao tempo de hoje. Tem consciência das armadilhas e dos perigos do “cinema político” e recusa o dogmatismo doutrinário para defender que é preciso repensar, literalmente, tudo. A Fábrica de Nada seria, então, uma “fábrica de tudo ou nada”, 0 ou 1, gato de Schrödinger ao mesmo tempo vivo e morto consoante o momento em que se abra a caixa. Uma aventura constante e colectiva onde, no fim de tudo, logo se verá o que aí vem. Cinéma-vérité onde a verdade não está na reprodução do real mas na sua efabulação. Obra-prima? Estamos convencidos que sim.