Até onde vai Guterres conseguir levar a ONU?
Na sua primeira Assembleia Geral, espera-se que secretário-geral da ONU faça um discurso com "conteúdo programático" e aborde a sua primeira grande proposta de reforma para "criar eficácia" na organização.
Incapaz, por definição, de resolver sozinho os problemas do mundo ou da própria ONU, o novo secretário-geral António Guterres acaba de apresentar uma proposta ambiciosa para reformar o Pilar da Paz e Segurança das Nações Unidas, um dos três braços da organização, e que é objecto de um intenso debate interno desde o final dos anos 1990.
Guterres chegará, assim, à sua primeira Assembleia Geral da ONU, cuja semana de debate político começa esta terça-feira, com alguns trunfos tangíveis na mão. A proposta, a que o PÚBLICO teve acesso, foi enviada no dia 12 aos 193 Estados-membros, uma semana antes do seu discurso perante o "parlamento do mundo". É ainda um documento informal (e inclui apenas uma nota de seis páginas e um organigrama sem pormenores) e destinado a iniciar um processo de consultas à escala mundial. Mas permite perceber qual é a nova filosofia proposta: combater a "fragmentação" do sistema da ONU e os seus "silos separados", como escreve Guterres na nota Restructuring of the Peace and Security Pillar, aproximar a máquina das operações de paz (militares) do planeamento e trabalho político (diplomatas), e aumentar a coerência, ao nível estratégico e operacional, do trabalho feito no terreno.
Um dos pais da reforma, o eritreu Tamrat Samuel, nomeado em Fevereiro pelo secretário-geral para liderar o grupo de trabalho com a tarefa de fazer propostas de reforma, descreve a opção escolhida por Guterres como a "solução intermédia", pondo de lado a opção mais radical de fundir, num só, os Departamentos dos Assuntos Políticos (DPA, na sigla inglesa) e das Operações de Paz (DPKO), criados em 1992 pelo secretário-geral egípcio Boutros Boutros-Ghali. A ser aprovado, esses dois departamentos desaparecem e renascem com novos nomes e uma nova arquitectura, numa fusão de responsabilidades que, na prática, obrigará civis e militares a partilharem estratégias e até, de forma literal, escritórios.
Nestes primeiros nove meses do mandato de Guterres, o mundo conseguiu tornar-se num lugar ainda mais caótico e sombrio. Aos problemas da desigualdade e da guerra, do terrorismo global e das alterações climáticas, do cibercrime e das violações dos direitos humanos, juntou-se a ameaça nuclear e novas crises de dimensão gigantesca, como a fuga em massa dos rohingya, a minoria muçulmana a quem a Birmânia não reconhece nacionalidade. Na quinta-feira, Guterres classificou a situação como "catastrófica". O secretário-geral, que visitou o estado de Rakhine muitas vezes nas suas anteriores funções no ACNUR, escreveu uma carta oficial ao Conselho de Segurança da ONU sobre os rohingya, um instrumento raramente usado. A última vez que um secretário-geral escreveu uma carta formal ao conselho foi em 1989, sobre o Líbano.
Na sua primeira Assembleia Geral, em Setembro de 2007, o seu antecessor, o sul-coreano Ban Ki-moon, escolheu a frase "Uma ONU mais forte para um mundo melhor" para título do seu discurso de fundo. Ban abriu essa intervenção dizendo que a ONU "tem de ser mais rápida, mais flexível e mais móvel", e dar "menos atenção à retórica e mais atenção aos resultados"; e terminou apelando à transformação da "forma como a ONU trabalha".
"Ambiciosas mas realistas"
Espera-se mais da intervenção de Guterres de terça-feira, de acordo com os diplomatas de topo e altos funcionários das Nações Unidas com quem o PÚBLICO falou nos últimos dias. "O seu discurso tem de ter conteúdo programático. Já todos sabemos que pensa e fala bem. A partir daqui, as coisas vão ser mais duras. Já não pode ser generalista. Agora fia mais fino. Dentro e fora, esperam-se ideias claras e com um razoável nível de pormenor sobre como vai reformar a ONU", disse um alto funcionário da organização
O muito aguardado "relatório de Tamrat Samuel", a partir do qual Guterres fez a nota enviada aos Estados-membros, está ainda no segredo dos deuses. “Consciente da delicadeza do tema” e da “potencialidade explosiva” de algumas das propostas, Guterres está a manter um “controlo muito apertado da informação”, dizem dois altos quadros da ONU. Não há cópias em ficheiro (fáceis de partilhar por email), mas apenas em papel — e muito poucas. Numa síntese, um funcionário que já leu o relatório diz que as propostas reflectem a ideia de que é necessário ter um sistema muito mais "fit for purpose”, ou seja, mais adequado e orientado aos fins a que se destina, e sublinha que “são ambiciosas, mas ao mesmo tempo muito práticas e realistas".
Um diplomata português que leu apenas a nota de dia 12 destaca “as bandeiras de Guterres sobre o day before e o day after das crises: mais diplomacia e prevenção, mais diplomacia e mediação, mais construção da paz” — por oposição à manutenção da paz tout court, que acontece depois de os conflitos serem estancados. “Não me parece revolucionário”, diz a mesma fonte, que nota o “esforço de maior integração e coordenação entre os mundos, muitas vezes estanques, do DPKO e do DPA”. “Vê-se que abaixo, acima e no meio há uma tentativa de integrar processos.”
"A reforma é um processo"
De nada servirá ter pressa. Politicamente, esta vai ser a semana mais importante dos três meses da sessão da Assembleia Geral e vai falar-se muito de reforma da ONU, mas nada de concreto acontecerá nos próximos dias em relação à proposta, avisam os diplomatas. “A reforma é um processo necessariamente longo e complexo”, diz uma diplomata do Ministério dos Negócios Estrangeiros português que acompanha a ONU. "E um paper, mesmo informal, tem sempre muitas propostas. Tem que ser estudado, digerido, discutido."
A diplomacia portuguesa considera a proposta "globalmente positiva", mas precisa de tempo, como os outros países, para analisar as "implicações práticas". Nas Necessidades, é sublinhado o “esforço e vontade de reforma” que Guterres demonstra desde o primeiro dia e o seu "forte empenho em melhorar a eficiência da máquina". “Portugal dá muita importância ao multilateralismo e leva as Nações Unidas muito a sério, por isso achamos bom tudo o que seja feito para revisitar a organização e tentar melhorá-la”, diz a mesma diplomata.
Na sede, antecipam-se meses difíceis. "A proposta vai gerar imensas resistências, porque há posições a eliminar e departamentos que vão ser fundidos", diz um alto quadro da organização que vê, há anos, como os Estados lutam por fazer eles "a macro-gestão do Secretariado, porque não querem perder o controlo". Dá um exemplo: não se pode mudar um funcionário de uma subdivisão para a outra sem a aprovação da Assembleia Geral. O desafio final será a 5ª Comissão da Assembleia, que tem o pelouro das questões administrativas e orçamentais (é com base nos seus relatórios que a Assembleia aprova o orçamento geral das ONU). Todas as medidas de Guterres terão de ser transformadas em resoluções e, a seguir, aprovadas pela 5ª Comissão. Neste aspecto, não se esperam problemas de maior, uma vez que o próprio secretário-geral, consciente de que não seria aceitável aumentar os custos, escreve na sua nota que “a intenção é que [a reforma] seja neutra em termos de custos", pois "não se antecipam nem recursos adicionais nem redução de custos”.
Guterres já aumentou as despesas em casos pontuais, como quando propôs a criação de uma nova estrutura para defender os direitos das vítimas de abuso e exploração sexual (Office of the Victims’ Rights Advocate), proposto em Abril na sequência de um primeiro relatório de Fevereiro (“Special measures for protection from sexual exploitation and abuse: a new approach”). “Mas o secretário-geral sabe que não pode fazer propostas que aumentem muito as obrigações financeiras obrigatórias dos Estados-membros”, diz a diplomata especialista em questões multilaterais. Tal como fez no ACNUR, Guterres fala com frequência sobre a redução de custos. "Não podemos perperdiçar um só dólar — ou euro ou iene ou o que seja", disse há dias ao anunciar que espera conseguir uma redução de 15% dos custos dos bens aéreos nas operações de paz. Neste caso, porém, não é de dinheiro que se trata. Resume Tamrat Samuel: “Esta reforma da ONU não é para cortar custos, é para criar eficácia.”