A ferida que não pode sarar

Três meses depois de Pedrógão, quando o Outono e o frio já espreitam, vale a pena regressar ao pesadelo que enegreceu uns 3% do território nacional. Há lições que convém não esquecer.

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Regressar a uma floresta dizimada pelo fogo é como expiar pecados num inferno. Caminha-se e o solo cozido estala debaixo da cinza que se levanta e deixa no ar um rasto fantasmagórico. Um cheiro acre irrita as narinas e cria uma impressão no olfacto que só muitas horas depois se dissipa. Mas a pena maior que se expia nasce da visão das árvores mortas. As mais jovens, de fuste delgado, arderam vergadas pelos ventos fortes criados pelas chamas e assim ficaram. As mais adultas e frondosas conservaram a sua majestade no tamanho, mas a sua altivez esmorece na ruína triste dos seus tons castanhos ou amarelos pardos.

Os incêndios florestais são um drama colectivo de consequências devastadoras. Este ano o drama atingiu proporções colossais. O que sobra da desgraça, nestas páginas captado pela fotografia de Nelson Garrido com recurso a um drone, é bem mais do que o testemunho de uma perda económica ou de um desastre ambiental que pagaremos por muitos anos: é também o certificado de incompetência a um país e a um Estado incapaz de proteger os seus bens mais preciosos. Como se cristalizassem ali a impotência e a vergonha da impotência.

Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos, Mação ou Alijó são nomes que compõem a história do terceiro pior Verão de sempre em termos de fogos florestais. São talvez as manchas negras mais nítidas no mapa cada vez mais nu, mais calcinado e mais esquecido do país rural. As casas destruídas invocam as dezenas de mortos apanhados no vórtice de uma surpresa que ninguém previu porque ninguém se deu ao trabalho de tentar prever. A terra ou o granito preto invocam as labaredas gigantes do fogo descontrolado. Os caminhos brancos da poeira ali continuam, como que a servir de esperança ao sistema circulatório de um corpo natural em busca da regeneração.

Portugal, ao contrário dos congéneres mais desenvolvidos, está a ser desflorestado a um ritmo alucinante (menos 150 mil hectares entre 2000 e 2015) numa era em que se aposta no sequestro do carbono, num tempo em que todas as armas são precisas para combater o aquecimento global. E a culpa maior dessa perda drástica do nosso mais importante recurso natural renovável é dos fogos. Dos grandes fogos. De fogos como os de Mação, ou de Pedrógão.

Pedrógão: Em Junho, arderam 27 mil hectares.a ministra da Administração Interna admitiu ter havido “descoordenação” no comando operacional do combate ao incêndio de Pedrógão Grande, nomeadamente na relação da Protecção Civil com outros agentes envolvidos nas operações
Pedrógão: Morreram 64 pessoas e mais de 200 ficaram feridas
Pedrógão
Pedrógão
Mação: O incêndio que começou na Sertã em Julho e alastrou para Mação, fustigando 18 mil hectares deste segundo município, foi o maior deste ano, queimando 29.752 hectares no total dos concelhos abrangidos
Mação enfrentou outro fogo florestal em Agosto, que queimou mais 12.897 hectares
Mação. 716 milhões de euros de prejuízos provocados pelos incêndios na região Centro
A Câmara de Mação vai apresentar queixa à Inspecção-Geral da Administração Interna pela actuação da Protecção Civil nos incêndios que afectaram o concelho em Julho e Agosto
Mação
Mação
O incêndio em Alijó, distrito de Vila Real, dizimou 4.400 hectares
Alijó. O fogo deixou de ser um epifenómeno nas montanhas distantes e, finalmente, começou a ser percebido como um perigo para o país
Alijó esteve três dias a arder
O incêndio em Alijó mobilizou 685 operacionais apoiados de 179 viaturas
Alijó
Alijó
Alijó
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Pedrógão: Em Junho, arderam 27 mil hectares.a ministra da Administração Interna admitiu ter havido “descoordenação” no comando operacional do combate ao incêndio de Pedrógão Grande, nomeadamente na relação da Protecção Civil com outros agentes envolvidos nas operações

214 mil campos de futebol

Quando o conceito se inventou, nos anos de 1980, um grande incêndio era o que consumia mais de 100 hectares. Na memória histórica havia registos de fogos como o que em 1824 consumiu cinco mil hectares nas matas de Leiria. Ou o de Setembro de 1966 que devorou a mesma área na zona de Sintra – e matou 25 soldados. Mas, logo em 1986, o fogo destruiu num único golpe 10 mil hectares em Vila de Rei. Em 2003, a dimensão foi novamente superada e na Chamusca arderam 21 mil hectares. Este ano, essa marca outrora dantesca foi banalizada. Em Junho, em Pedrógão, arderam 27 mil hectares; em Julho, na Sertã, arderam 29 mil. O incêndio de Alijó (4.400 hectares) seria há 30 anos um acontecimento; este ano foi mais um.

O aquecimento global e a seca, a falta de ordenamento e a acumulação de matos entre as árvores transformaram a floresta nacional num barril de pólvora. As imagens que sobram deste Verão dramático alimentam essa ideia de que o fogo se tornou um animal feroz e descontrolado. Em 2017, o número de ocorrências esteve na média da década anterior, mas a área ardida aumentou 234%. Bastaram 193 incêndios para destruir 90% da área total dizimada este Verão (correspondente a 214 mil campos de futebol).

Convém por isso não esquecer. O fogo deixou de ser um epifenómeno nas montanhas distantes e, finalmente, começou a ser percebido como um perigo para o país. Oxalá nada se esqueça. Oxalá o drama de Pedrógão, ocorrido há apenas três meses, ou o horror experimentado em centenas de aldeias e por milhares de homens e mulheres do país distante se perpetuem na consciência colectiva. Só assim se poderá homenagear a memória das 64 pessoas que morreram. Só desse modo poderemos esperar que o sobressalto cívico que se ergueu com as chamas permaneça activo. Mais do que uma nódoa na paisagem provocada pela incúria, as imagens de Mação ou de Alijó devem ser um suplemento de determinação e de coragem capaz de mobilizar o país à imagem e semelhança do que aconteceu na Galiza com o afundamento do petroleiro Prestige, em Novembro de 2002. “Nunca mais”, lembram-se?

O aviso faz sentido porque a natureza tende a ser cúmplice da eterna propensão dos humanos para liquidarem as más memórias. O solo e as pedras negras hão-de ser lavadas pelas chuvas e pintadas pelos fetos, pelas toiças do eucalipto ou pelos rebentos das sementes do pinheiro que persistem em resistir a cada vaga de fogos que regularmente as destrói. Há o risco desses sinais de resistência e de renascimento lavarem as feridas deste Verão horrível.

Mesmo aí, sobrarão os danos indeléveis para alimentar a atenção. A regeneração natural continuará a exigir o cumprimento de penas, como se depois do castigo do Verão fosse necessário um outro castigo. A madeira morta que os homens não conseguirem retirar da floresta ardida cedo se tornará um viveiro de pragas que prolongará por anos a marca da devastação. O solo calcinado, esquelético e calvo vai ser presa fácil das chuvas que se aproximam. Sem coberto vegetal, o impacte das gotas no chão fará saltar as partículas, acelerando a erosão. Sem permeabilidade natural, esses solos servirão de leito a enxurradas. O que por estes dias aconteceu na Estrada da Beira é um aviso para o que aí vem.

Três meses depois de Pedrógão, quando o Outono e o frio já espreitam, vale a pena regressar ao pesadelo que enegreceu uns 3% do território nacional. Custa fazê-lo, mas há lições que convém não esquecer. Será bom se a memória do fogo deste ano nos perseguir por muito tempo.

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