Os encontros e desencontros de Volker Schlöndorff
Autor de O Tambor ou A Honra Perdida de Katharina Blum, um dos veteranos do novo cinema alemão dos anos 1960 e 1970, assina com Reviver o Passado em Montauk, esta semana nas salas, o seu filme mais pessoal, escrito com Colm Tóibín.
“Durante as filmagens, escrevi a uma amiga a dizer-lhe que tinha a sensação deste filme ser o meu canto do cisne. E ela respondeu-me 'Pelo amor de Deus não faças isso! Tens de fazer outro filme!'”
Volker Schlöndorff ri-se do outro lado da linha, em Berlim. Ri-se porque a amiga a quem disse que Reviver o Passado em Montauk (esta semana nas salas portuguesas) tinha qualquer coisa de “fim de ciclo” entendeu mal a afirmação: “Não queria dizer que este ia ser o meu último filme, apenas que era um filme que fecha um capítulo da minha vida. Mas é verdade que não tenho outro projecto em mãos. Estou à espera que apareça algo que eu sinta urgência em fazer.”
A urgência é outra coisa quando se tem os 78 anos de Schlöndorff (n. 1939). Uma das figuras centrais da geração do Novo Cinema Alemão dos anos 1960 e 1970, contemporâneo de Werner Herzog ou Wim Wenders, companheiro de vida e de carreira de Margarethe von Trotta (com quem foi casado 20 anos), autor de um dos filmes mais aclamados do cinema alemão desse período, O Tambor (1979), Palma de Ouro em Cannes e Óscar de melhor filme estrangeiro.
Apesar desse passado, há uma amargura que interrompe as gargalhadas francas de 30 minutos de conversa por Skype. Uma amargura que vem da dimensão pessoal do novo filme, Reviver o Passado em Montauk, e da recepção desastrosa que o filme teve no Festival de Berlim, em Fevereiro passado. Schlöndorff evoca o mestre Billy Wilder (1906-2002), o autor de Quanto Mais Quente Melhor e O Apartamento, com quem conversou longamente em 1988 para uma série televisiva (Billy Wilder, How Did You Do It?), e as suas perguntas sobre o fracasso. “Durante todos os meus anos de amizade com ele, íamos sempre dar ao mesmo: porque é que às vezes não conseguíamos contar uma história de maneira a que as outras pessoas se interessassem, apesar de a querermos contar por ser uma história interessante? Às vezes, é só uma questão de comunicação. E tenho a sensação que as pessoas não conseguiram perceber, com Montauk, do que é que eu queria falar. No fundo, isto não tem nada a ver com ter sucesso. É só sobre comunicar com as pessoas.”
É a comunicação, aliás, que está no centro deste novo filme – uma história sobre desencontros românticos e emocionais, sobre pessoas que “não podem mudar quem são”, sobre um escritor que se passa o tempo a castigar e que é “o seu pior inimigo”.
Max, interpretado pelo sueco Stellan Skarsgård, de viagem a Nova Iorque para promover o seu novo romance, reencontra uma mulher do seu passado, Rebecca (Nina Hoss), a paixão de uma vida que lhe fugiu por entre as mãos. É uma história que foi buscar inspiração ao escritor suíço Max Frisch (1911-1991), cujo romance veladamente autobiográfico Montauk fala de um escritor que reencontra a mulher que deixou fugir. Mas que é também uma história que vem da vida do próprio Schlöndorff, “cuja origem desvendei em parte na autobiografia que publiquei há 10 anos. Muitos anos depois de a ter perdido, reencontrei [essa mulher]. Foi um evento muito forte na minha vida, e fui confrontado com uma imagem de mim próprio muito diferente da que eu tinha.”
Começou aí o guião de Reviver o Passado em Montauk, assinado a meias pelo realizador e pelo romancista irlandês Colm Tóibín (Brooklyn, Nora Webster, Mães e Filhos...). Mais um escritor para juntar a uma longa lista de autores que Schlöndorff filmou – Robert Musil em O Jovem Törless (1966), Heinrich von Kleist em Michael Kohlhaas (1969), Bertolt Brecht em Baal (1970, com Rainer Werner Fassbinder no papel principal), Heinrich Böll em A Honra Perdida de Katharina Blum (1975), Marguerite Yourcenar em Golpe de Misericórdia (1976), Günther Grass em O Tambor, Marcel Proust em A Paixão de Swann (1984), o próprio Max Frisch em Homo Faber (1991)…
O desafio da literatura é uma constante para o cineasta: “Sempre me interessei muito por literatura, e trabalhei muito com escritores vivos, travei amizade com muitos deles. Os escritores são muito semelhantes uns aos outros, são extremamente voltados para si próprios. Forçosamente, tudo o que lhes acontece na vida acaba por ser matéria-prima para o próximo livro. Achei que, agora, depois de ter conhecido tantos escritores, já podia retratar um autor como deve ser. Foi uma das rodagens mais fáceis que já tive, porque sentia, finalmente, que sabia do que estava a falar.” Ri-se. “Às tantas, pensei que este é que devia ter sido o meu primeiro filme, não O Jovem Törless! Se em vez de adaptar Musil, tivesse escrito a história de um jovem alemão que chegava a França dez anos depois da guerra e ia para um internato em plena guerra da Argélia, teria sido uma história fantástica e talvez nunca me tivesse virado para as adaptações literárias. Mas dá-se um passo numa direcção, e pronto...”
A direcção poderia mesmo ter sido muito diferente. Schlöndorff estudou Ciências Políticas na Sorbonne e cursou Cinema na escola IDHEC, tendo sido assistente de realização de Louis Malle, Jean-Pierre Melville e Alain Resnais. “Eu podia perfeitamente ter sido um cineasta da Nouvelle Vague e nunca ter regressado à Alemanha,” explica, “mas foram literalmente os meus amigos, e mestres, franceses a empurrarem-me de regresso, a dizerem-me que eu tinha de ir fazer filmes no meu país natal. "Já cá temos cineastas franceses que cheguem!", diziam, recorda entre risos. “Mas ainda hoje me sinto em grande parte francês. Aliás, se pensarmos bem nas coisas, o Werner Herzog é completamente teutónico mas vive na América há mais de 30 anos, o Wim Wenders é fascinado pela cultura americana, eu sou meio francês, a Margarethe von Trotta ainda vive em Paris… Talvez fosse por isso que tínhamos tanto distanciamento ao olhar para o nosso próprio país, tínhamos todos um pé noutros países, noutras culturas.”
Não por acaso, Reviver o Passado em Montauk é o exemplo típico de uma moderna produção europeia: rodada em parte em Nova Iorque e falada em inglês, com financiamentos franceses, alemães e irlandeses. “O filme tinha de ser em inglês, porque a história teve realmente lugar em Nova Iorque,” aponta o realizador, que dirigiu vários filmes nos EUA (incluindo uma versão para televisão da Morte de um Caixeiro Viajante de Arthur Miller com Dustin Hoffman no papel principal e a primeira adaptação da História da Aia de Margaret Atwood). “E logo após a primeira leitura do guião, o Stellan diz-me que 'vou ter de expiar todos os pecados da minha vida'”, ri-se Schlöndorff. “Ele queria dizer na sua própria vida, mas queria também dizer que tinha compreendido perfeitamente que esta não era uma história apenas sobre o remorso, mas também sobre a culpa, e sobre o facto de nem sempre nos comportarmos como deve ser na vida real.”
Apesar disso, Schlöndorff está longe de se esquivar às responsabilidades. Definindo-se ainda hoje como “animal político” - empenhou-se, por exemplo, no salvamento dos lendários estúdios Babelsberg do camartelo na década de 1990 (serviu até como director-geral do complexo durante cinco anos e é actualmente presidente do conselho de administração), e tem apoiado a chanceler Angela Merkel nas campanhas eleitorais desde 2005. “Agora quando me ligou, apanhou-me a escrever cartas a amigos para colocarmos um anúncio no jornal em apoio a Angela Merkel. Não é que ela precise, porque acho que vai ganhar na mesma, mas não tenho medo nenhum de assumir publicamente o meu apoio, embora eu venha da esquerda e dos social-democratas. Sempre fui assim desde miúdo. Quando estava na escola e via alguma injustiça a ter lugar, começava logo a organizar movimentos”, diz entre risos. “Não tinha ainda nenhuma ideia de esquerda ou direita, acho apenas que é um instinto que é mais pessoal para algumas pessoas, mais público noutras.”
Agora, enquanto não tem nenhum projecto em mãos, Schlöndorff vai fazendo a promoção de Reviver o Passado em Montauk, que define como o seu filme mais pessoal, olhando para o passado de uma maneira que não é habitual nele. “É porque me apanhou na velhice!”, ri. “A minha natureza é sempre a de olhar para a história, para o passado. Tudo na vida é sempre consequência de alguma coisa que aconteceu antes. Mas nunca olhei para trás desta maneira. E é também por isso que sinto que se fecha um capítulo.”