A voz dos Orelha Negra é cada vez mais audível
Música predominantemente instrumental cada vez mais próxima da ideia de canção clássica, eis os Orelha Negra do terceiro álbum, que é esta sexta-feira editado e mostrado ao vivo no Festival Iminente de Oeiras.
Não é um processo rápido mas os Orelha Negra não prescindem dele. O primeiro álbum foi lançado em 2010, depois de um concerto no MusicBox em Lisboa e, o segundo, em 2012, depois de um espectáculo no Centro Cultural de Belém. Ou seja, optam por fazer concertos de apresentação dos discos ainda antes destes estarem finalizados. O mesmo aconteceu com o novo, editado esta sexta, e que tal como os outros é homónimo.
Em Janeiro do ano passado, deram dois concertos (Centro Cultural de Belém em Lisboa e Hard-Club no Porto), onde já tocaram os temas agora disponíveis, embora com roupagens e opções sonoras diferentes. Agora, finalmente, eis o terceiro álbum finalizado. “Foi um processo mais demorado do que estávamos à espera, porque inicialmente não havia editoras envolvidas nem prazos. Também por outras circunstâncias, como a morte de duas pessoas que nos eram próximas, além dos afazeres de cada um. As coisas foram-se atrasando, mas fizemos tudo com a calma necessária, o que acabou por ser bom”, esclarece Fred Ferreira.
Esta sexta-feira, no festival Iminente de Oeiras (que decorre até domingo, com arte urbana e com sessões DJ e concertos de, entre outros, Slow J, Scúru Fitchádu, Throes + Shine, Capitão Fausto, Branko, Marfox, Xinobi + Moullinex, Bruno Pernadas, Capicua, Carminho, Chullage, Rocky Marsiano, DJ Ride ou Halloween), lá estarão Fred Ferreira (bateria), João Gomes (teclas), Francisco Rebelo (baixo), Sam The Kid (samples, sintetizadores) e Cruzfader (gira-discos) para tocar o novo disco e não só.
Dir-se-ia que na música do grupo existe recriação do passado, mas não apenas para o celebrarem, transformando-o numa excitante aventura no presente, numa altura em que a música feita em Portugal já não é dominada de forma hegemónica pelo rock. Os efeitos globais da cultura hip-hop e R&B e as sucessivas vagas de miscigenação sonora (do kuduro ao afro-house) dos últimos dez anos vieram alterar profundamente o panorama, como se constata aliás pela composição do cartaz do festival Iminente, com curadoria do artista Alexandre Farto (Vhils).
“O que vamos apresentar no festival está mais de acordo com o novo disco, num concerto de músicas novas, antigas e medleys, mas ainda não será o acrescento final que só iremos dar a conhecer nos próximos meses, até porque a parte visual, tal como a sonora, será um pouco diferente no final do ano.” Ou seja, é como se o grupo estivesse a trabalhar em permanência os novos temas, num trabalho que parece nunca ter fim.
Fred Ferreira ri-se. “Para nós acaba por ser confortável essa forma de operar. Agrada-nos marcar um concerto de apresentação com 90% das músicas feitas e depois ir para estúdio compor com tudo o que achávamos que era necessário, da mesma forma que estamos confortáveis em tocar depois as músicas mais de acordo com o resultado finalizado em disco.”
O processo interessa, mas o que conta no fim de contas é o resultado. E neste caso é mais do que convincente, com o quinteto a devolver-nos mais uma mão cheia de bons temas instrumentais, com motivos vocais, alguns deles não muito distantes da estrutura de canção. Há fragmentos vocais de soul, arranjos luminosos que nos transportam para a época dourada do funk e um envolvimento sonoro global onde as técnicas de corte-e-cola do hip-hop se misturam com um edifício sónico orgânico que por vezes é envolvente, outras cósmico e outras avizinhando-se do épico.
Por norma o que desencadeia a feitura dos temas é um motivo sonoro ou vocal, em forma de sample, sendo a partir daí que o edifício se vai produzindo. Daí podem resultar temas que parecem captar o espírito “disco” dos anos 1970 (Skylab, Ost), ou procurar cruzamentos de hip-hop com rock (A sombra, Parte de mim) ou blues (Ready), ou até evocar momentos de intimidade (Claire, Santa ela), e tudo desembocar numa canção clássica soul-funk de belo efeito (Última volta). “Todas as nossas pesquisas vão no sentido do hip-hop e da soul, porque essa acaba por ser a identidade, mas também existem referências do rock, principalmente dos anos 70 e 80”, explica Fred. “Neste disco aconteceu juntarmos ideias de músicas diferentes numa só. Ou seja, pegar em samples de músicas distintas em que havíamos trabalhado e juntar tudo numa só.”
Todos os intervenientes no projecto têm outros afazeres. Sam e Cruzfader têm os seus percursos solitários, além de serem alvo de muitas colaborações. Fred toca com Slow J, integra a Banda do Mar, além de ter estúdio e editora própria, produzindo vários nomes. João e Francisco já se encontraram nos Cool Hipnoise, fazendo hoje parte de várias formações, como os Cais do Sodré Funk Connection ou Fogo-Fogo.
No entanto, quando se juntam é como se as suas identidades se diluíssem para fazer sobressair a ideia Orelha Negra, daí que, das fotografias à música, fizessem questão de vincar que o que interessa é o colectivo. No novo disco, mais uma vez, alguns apontamentos vocais que se ouvem são repescados de discos obscuros. Mas desta feita essas vozes parecem ganhar um novo significado, aproximando a música do grupo, mais do que nunca, do sentido clássico da canção, embora a combustão continue a ser a mesma de sempre, com elementos soltos de funk, jazz, soul e hip-hop, a aliarem-se para comporem uma máquina de ritmos e ambientes contemporâneos atingidos pela memória da música negra.