Caloiros devem ser “incondicionalmente servis”, diz “manual” distribuído no Porto

Documento entregue por alunos mais velhos na Faculdade de Ciências denunciado por deputado do BE. Director diz ser “impossível” praxe nas suas instalações.

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Manual está a ser distribuído segundo o BE, mas o director da facultada nega qualquer prática de praxe Paulo Pimenta

“O caloiro é incondicionalmente servil, obediente e resignado”; “não é um ser racional”; “não goza de qualquer direito”. As citações são retiradas de um “Manual de Sobrevivência do Caloiro” que está a ser distribuído, nos últimos dias, por alunos mais velhos aos novos estudantes da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP). O teor do documento é denunciado pelo deputado do Bloco de Esquerda (BE) Luís Monteiro. Já a direcção da faculdade diz ser impossível que este tenha sido entregue dentro das suas instalações.

No “manual” há uma página em que se elenca um conjunto de “direitos, deveres e permissões do caloiro”. “O caloiro não é um ser racional”, começa por ler-se. As considerações que diminuem a condição dos novos alunos sucedem-se: “A espécie em questão não goza de qualquer direito, salvo o da existência (até por vezes questionável) ”; “O caloiro é assexuado”, “Deve ser sempre moderado no uso da palavra (zurra, grunhe, bale e relincha só quando lhe é dada permissão)”. Mais adiante lê-se ainda: “Não é permitido pensar, opinar, gesticular, buzinar, abanar as orelhas ou pôr-se em equilíbrio nas patas anteriores”.

O conteúdo "manual", que foi entregue por alunos mais velhos aos novos estudantes da FCUP ao longo dos últimos dias – as matrículas para quem acabou de ser colocado no ensino superior começaram na segunda-feira –, chegou ao PÚBLICO através do deputado do BE Luís Monteiro. O parlamentar bloquista, eleito pelo círculo eleitoral do Porto, teve conhecimento da situação ao final do dia de terça-feira.

Recuperam "linguagem dos anos 1990"

Monteiro diz-se “chocado” com este “manual de sobrevivência do caloiro”. “[Os autores] fazem-no sem medos, recuperando uma linguagem que era a dos anos 1990”, afirma. Depois da visibilidade pública que as praxes académicas abusivas ganharam nos últimos anos – na sequência de casos como o que resultou na morte de seis estudantes da Universidade Lusófona, no Meco – estas a actividades têm “alterado a sua metodologia, retraindo-se”, considera o deputado bloquista. “Está menos pública e são menos palpáveis os abusos que acontecem na praxe."

Por isso, a “total abertura” com que a linguagem que diminui a condição dos novos alunos da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto é usada, causa ainda mais perplexidade Luís Monteiro, tanto mais que o documento que foi entregue a todos os novos alunos e não apenas àqueles que aceitam ser praxados.

“Parece-me que resulta claro de um caso como estes que faltam mecanismos de apoio aos novos alunos e faltam mecanismos para controlar os abusos na praxe”, defende Monteiro que, além da denúncia pública, vai enviar uma questão parlamentar ao Ministério da Ciência e Ensino Superior sobre esta situação. O PÚBLICO também perguntou ao gabinete de Manuel Heitor se tinha conhecimento deste caso, mas não obteve uma resposta até à hora do fecho desta edição.

Por seu turno, o director da FCUP, António Fernando da Silva, recusa que aquele documento possa ter sido entregue dentro das instalações da faculdade. O responsável foi categórico na resposta: “Aqui dentro, não está a acontecer, de certeza absoluta."

Segundo explica Fernando da Silva, todas as actividades ligadas à praxe académica foram por si proibidas, no interior das instalações da FCUP, há sete anos. No ano passado chegou mesmo a pedir a intervenção da PSP para afastar os estudantes pertencentes às estruturas praxístias das imediações do edifício situado na zona do Campo Alegre, no Porto. A oposição do director a essas actividades tem motivado desentendimentos públicos com os alunos envolvidos nas praxes.

“Este ano nem andam aí”, garante o director da faculdade de Ciências. António Fernando da Silva explica ainda que, desde há sete anos, todos os novos alunos da FCUP recebem, no dossiê de boas vindas, uma cópia de um despacho de 2010 do director da faculdade onde é sublinhado que a praxe académica “não é uma actividade escolar e é de adesão livre” e que “não está autorizada” nas instalações da faculdade. Este ano, não foi excepção. Os novos alunos daquela unidade da Universidade do Porto terão acções de recepção e boas-vindas entre os dias 1 e 18 de Outubro.

Nove queixas de abusos no ano passado

O Ministério da Ciência e Ensino Superior recebeu nove queixas de actos violentos ou coercivos em praxes académicas em 2016/17. O número, revelado pela tutela ao PÚBLICO, diz respeito a todo o ano lectivo, e é semelhante ao que tinha sido avançado pela mesma fonte em Outubro do ano passado. Ou seja, todas as queixas recebidas dizem respeito aos primeiros meses de aulas.

Além destas queixas, a Direcção-Geral do Ensino Superior abriu ainda uma averiguação depois de terem vindo a público notícias que davam conta de uma praxe, ocorrida no final de Setembro do ano passado, com um aluno da Escola Superior Náutica Infante D. Henrique, numa praia de Oeiras.

Esta semana, cumprem-se três anos desde que o então designado Ministério da Educação e Ciência criou um endereço electrónico (praxesabusivas@dges.mctes.pt) e um número de telefone dedicado (213 126 111) para receber denúncia de actos violentos ou coercivos em praxes académicas. Desde então, a tutela recebeu 18 comunicações, metade das quais no ano passado.

Notícia corrigida nesta quinta-feira. Por lapso, o PÚBLICO tinha escrito erradamente o nome do director da FCUP.

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