As inesgotáveis paixões de Monteverdi no Centro Cultural de Belém
Comemorando os 450 anos deste compositor que é um nome fundamental na história da música ocidental, uma maratona em Lisboa dá o palco a algumas das suas mais extraordinárias criações, incluindo as Vésperas de Nossa Senhora, a ópera L’Orfeo e os oito Livros de Madrigais.
Claudio Monteverdi (1567-1643) foi uma das figuras mais marcantes da História da música ocidental, dominando com mestria a tradição herdada do Renascimento ao mesmo tempo que operava transformações radicais no âmbito da emergente linguagem musical do barroco. Activo em Mântua e Veneza, foi simultaneamente o último representante de peso no domínio do madrigal e o primeiro grande compositor de ópera. Assinalando os 450 anos do seu nascimento, em Cremona, o Centro Cultural de Belém (CCB) programou para este fim-de-semana um Festival Monteverdi que dará a ouvir algumas das suas mais extraordinárias criações, incluindo o ambicioso desafio que representa a interpretação dos oito Livros de Madrigais. A maratona de madrigais será repartida pelo agrupamento italiano La Venexiana, considerado uma referência neste repertório, e pelos portugueses Officium Ensemble, Coro Ricercare e Grupo Vocal Olisipo, com concertos às 11h, 14h30, 17h e 20h no sábado e no domingo. Também no sábado, às 21h, La Venexiana apresenta a primeira ópera de Monteverdi, L’Orfeo (1607). Na abertura do festival, esta quinta-feira às 21h, o Ludovice Ensemble propõe novas perspectivas em torno das Vésperas de Nossa Senhora, publicadas em Veneza em 1610.
“Monteverdi é o mestre das paixões, tem um sentido dramático único, complexo, profundo, mas sincero e imediato”, diz ao PÚBLICO Miguel Jalôto, cravista, organista e director musical do Ludovice Ensemble. “As Vésperas são a sua obra-prima sacra e para mim uma obsessão que me revolve o interior, do ponto de vista confessional tocam profundamente a minha fé católica.” Monteverdi foi essencial na formação de Miguel Jalôto, que chegou mesmo a formar um pequeno ensemble, designado La Speranza (uma das personagens de L'Orfeo), enquanto realizava estudos superiores na Holanda, com o qual apresentou várias obras de Monteverdi em conjunto com a música dos seus contemporâneos, antecessores e sucessores. “Monteverdi não pode ser compreendido nem apreciado na verdadeira dimensão se não for contextualizado. Ele não inventou a monodia, nem o recitativo, nem o moteto a voce sola, nem o estilo concertante”, explica. “Antes dele houve Peri, Caccini, Gagliano, Viadana, Cima, Cavalieri, Gabrieli, mas Monteverdi conseguiu elevar o trabalho pioneiro e experimental destes seus colegas a um outro nível.”
As ousadias da sua linguagem geraram polémica, mas o próprio compositor encarregou-se de as fundamentar numa carta assinada pelo seu irmão Giulio Cesare e inserida no Prefácio ao V Livro de Madrigais (1605). Explicava assim que o novo estilo consistia numa seconda praticca, cujo princípio fundamental era a supremacia do texto, por oposição à prima praticca, ou seja, ao estilo polifónico herdado do Renascimento.
“As Vésperas de Monteverdi transformaram-se num hit, pelo que são talvez interpretadas em demasia, quando há outras obras do mesmo género – os Salmos de Vésperas de Rovetta, Grandi, e mesmo do nosso João Lourenço Rebelo – igualmente de altíssimo nível e espectaculares para o público”, argumenta. “Isso leva a interpretações rotineiras que apenas apelam ao lado mais aparatoso e grandioso”, acrescenta, contrapondo que o Ludovice Ensemble tem uma visão oposta: “Vemos a obra sobretudo no seu contexto litúrgico, na sua função a meio caminho entre o rigor da liturgia oficial (salmos, cântico) e as práticas devocionais íntimas (motetos).” Para essa abordagem teve especial importância a experiência prévia, nos Dias da Música de 2016, de interpretação das Vésperas na “versão romana”, isto é, despojada de acompanhamento instrumental, com excepção do baixo contínuo. Tratava-se de uma possibilidade que Monteverdi também previu, não só para uso nas capelas papais – a obra é dedicada ao Papa Paulo V –, mas também para as igrejas que não dispunham de tantos meios.
Na versão que hoje abre o Festival Monteverdi foram inseridos numerosos itens em cantochão – antífonas, orações e leituras – mas também as entoações a solo do órgão. A solenidade escolhida para os textos foi a da Natividade de Nossa Senhora, cujo dia litúrgico é 8 de Setembro. O programa é completado com obras de compositores que se ouviam em Veneza quando Monteverdi assumiu o posto de mestre de capela da Basílica de São Marcos: Andrea e Giovanni Gabrieli e Giovanni Bassano.
Em relação às práticas interpretativas, Jalôto optou por usar os instrumentos apenas nos momentos prescritos pelo compositor. “Recusamos as dobragens nos salmos, supostamente ‘históricas’ mas sobretudo usadas em contextos e repertórios diferentes, que aqui só servem para obscurecer o texto.” Em contrapartida, no Magnificat recuperou-se o uso original de flautas e traversos, frequentemente ignorados por razões de orçamento. “Restituímos ao órgão o papel de instrumento essencial do contínuo, mas permitimo-nos a fantasia de adicionar duas tiorbas, prática corrente da época”, conta. "Os coros terão uma voz por parte e as partes de alto [contralto] foram atribuídas a tenores agudos, o único tipo vocal que Monteverdi conheceu para esta tessitura.”
O trabalho sobre “as paixões e os afectos do texto” apoia-se nas “práticas vocais históricas à maneira de Caccini, contrariando “a tendência de alguns intérpretes para misturarem tudo”. “Eu posso aprender muito com o estilo de uma fadista ou com a emissão vocal de um cantor da Córsega, mas isso não se pode sobrepor a um correcto entendimento das práticas seiscentistas”, aponta Jalôto. Através de umas Vésperas que procuram “ser mais fiéis ao contexto original, mas sem dogmas arqueológicos”, o Ludovice Ensemble faz também uma espécie de manifesto: “Recusamos o espectáculo vazio, as instrumentações arbitrárias, as ornamentações excessivas, as influências da world music e da pop, mas abrimo-nos a uma releitura da ordem dos andamentos, à inclusão de outras composições e a uma interpretação apaixonada e intensa dos textos.”
Aquilo a que chamamos vida
Também o alaudísta Gabriele Palomba, responsável pela direcção artística de L’ Orfeo, a cargo do agrupamento La Venexiana e de cantores como Riccardo Pisani, Emanuela Galli e Raffaele Pe, tem uma paixão sem limites por Monteverdi. “Foi no final dos anos 90, pouco depois de me ter diplomado em alaúde, que tive a sorte de encontrar Claudio Cavina [fundador de La Venexiana], que me convidou a colaborar num concerto”, conta ao PÚBLICO. Nessa sua primeira experiência profissional com um grupo madrigalístico compreendeu “como apenas a voz humana pode com os seus matizes e com o seu pathos criar matéria viva” através destas teias sonoras. “Fiquei fascinado ao verificar como o canto conseguia modelar cada palavra individual no seu mais profundo significado, transformando-a em pura emoção.” Para Palomba, “o fluir de emoções que Monteverdi nos transmite também nos pertence” e “não é outra coisa senão aquilo a que chamamos vida.”
Ao CCB Palomba traz um programa que adora: Orfeo e Arianna, esta última presente no concerto dedicado à selecção de obras dos Livros de Madrigais VII e VIII, já que o famoso Lamento de Ariana subsiste também na forma de madrigal a cinco vozes. “Os homens, as mulheres, as paixões, uma verdadeira prece e um verdadeiro lamento: eis o que amo em Monteverdi e espero poder partilhar com os músicos e o público nestes concertos!” A este propósito, conta uma pequena história a partir da carta que Monteverdi escreveu de Veneza em 1616 em resposta à proposta para pôr em música o libreto de Scipione Agnelli La favola di Peleo e Tetide. “As personagens eram tritões, divindades marinhas, zéfiros, sereias, cupidos…, em suma a matéria para uma obra fantasiosa, um grande desenho animado. A resposta de Monteverdi foi: ‘Como, caro Senhor, poderei imitar o falar dos ventos se eles não falam! E como poderei com os meios deles mover os afectos? Move-os Arianna por ser mulher, e move-os Orfeo por ser homem mas não o vento’… E acrescenta: ‘A Ariana conduz-me a um justo lamento e Orfeo a uma justa prece, mas a esta [a ópera proposta] não encontro nenhuma finalidade’.”
Além de L’Orfeo, La Venexiana irá interpretar uma selecção de madrigais dos Livros VII e VIII (Madrigali Guerrieri ed amorosi). O contraste entre estas últimas obras e as dos primeiros livros, a cargo do Officium Ensemble e do Coro Ricercare, sob a direcção de Pedro Teixeira, será revelador da fascinante trajectória artística do compositor. Ao Grupo Vocal Olisipo, dirigido pelo barítono Armando Possante, cabem os volumes intermédios (V e VI). “Foi cantando madrigais que decidimos formar o agrupamento, que fomos premiados em concursos internacionais e que conhecemos alguns dos grupos e cantores que, sendo referências mundiais, nos inspiraram e ajudaram a compreender as complexidades da sua interpretação”, nota Armando Possante ao PÚBLICO, referindo o caso dos grupos ingleses Hilliard Ensemble e The King’s Singers e da soprano Jill Feldman, especialistas cujos ensinamentos recordam muitas vezes nos ensaios. “O equilíbrio perfeito entre palavra e música, entre exteriorização e intimismo e, sobretudo, entre escrita solística e de ensemble faz com que seja um género ao qual voltamos sempre.”
Armando Possante sublinha “a riqueza com que Monteverdi ilustra musicalmente os poemas”, permitindo “aos cantores explorar a expressão das emoções e dos afectos de modo a construir em conjunto toda uma paisagem emocional”. Umas das fontes de fascínio desta música reside nas formas diferentes e por vezes opostas de transmitir as intenções sugeridas pelo poeta, já que “cada madrigal é como uma ópera em miniatura”. Por esse motivo, o debate e a experimentação sobre “a melhor forma de articular uma sílaba ou uma exclamação, a escolha da palavra mais significativa numa frase (decidindo se uma frase demonstra um determinado sentimento ou esconde um afecto oculto)” são questões recorrentes. “Por vezes trata-se de sentir se a dor deve ser expressa num grito ou num murmúrio”, diz. As possibilidades expressivas são tantas que as escolhas interpretativas a fazer se convertem na maior dificuldade num repertório tão vasto (37 peças). Mas esta dificuldade é também para Possante a maior recompensa: “o prazer sempre renovado de abordar obras que nunca se esgotam, transformando-se (e a nós com elas) em cada audição.”
Poesia em música
Também o percurso artístico de Pedro Teixeira, como coralista e maestro, tem sido acompanhado pela “genial poesia em música” de Monteverdi, incluindo a ambiciosa tarefa de preparar e dirigir cerca de 80 madrigais (Livros I a IV), no CCB, repartidos por dois agrupamentos: o Officium Ensemble, com 12 cantores, e o Coro Ricercare, com 37. “Os desafios técnicos são muitos a começar pela questão das tessituras vocais das várias linhas melódicas”, explica Teixeira. “O público não deverá notar, mas as trocas de linhas entre cantores serão constantes, pelo âmbito extremo que muitas das partes encerram.” O objectivo foi que o conforto vocal fosse o melhor possível, ficando os cantores mais disponíveis para a interpretação.” Tal como os seus colegas, Pedro Teixeira acha que “nenhuma palavra deverá ser cantada sem ir ao âmago do sentido do texto, pondo em evidência a beleza de cada poema”.
No que diz respeito às práticas de execução, refere que não há indicações históricas do uso de órgão positivo e de viola da gamba, juntamente com as vozes, na interpretação dos madrigais de Monteverdi, mas optou por incluir estes instrumentos. “A escolha de um órgão positivo (no caso do Coro Ricercare) e de órgão positivo e viola da gamba (no caso do Officium Ensemble) deveu-se a considerações de ordem estética, com o objectivo de vincar em determinados momentos a expressividade de que esta música vive.” Por outro lado, fazer 20 madrigais em cada concerto implica a exploração da possibilidade de alternância de texturas. No caso do Officium Ensemble não só algumas obras serão a cappella, como outras terão apenas ensemble vocal e viola da gamba. Noutras ainda, usam-se só vozes e órgão.
Em relação ao Coro Ricercare, o desafio era transportar a estética de música de câmara inerente aos madrigais de Monteverdi para um grupo maior. “A procura de texturas diversas resultou na alternância entre tutti e grupos reduzidos do coro (em madrigais que inspiram intimismo ou algum virtuosismo), assim como o uso criterioso do órgão." Estando o Coro Ricercare vocacionado para a interpretação da música do nosso tempo, poder trabalhar Monteverdi foi “um desafio interessantíssimo”, pois “cada linha desempenha um papel fulcral em praticamente todo o repertório, em contraponto com alguma verticalidade, particularidades que muita da nova música coral dos nossos dias também contém”.