Este país não é para todos
O que está mal é que a função pública volte a ser a espinha dorsal, o foco de toda e qualquer discussão política substantiva sobre o futuro.
No Douro, uma mulher ganha 28 euros numa jornada da vindima sob o sol inclemente, em terrenos declivosos e cascalhentos. Um homem recebe em média 30. No cais de Gaia, onde o turismo se afirma como o emblema de um país bem-sucedido na economia, os trabalhadores dos barcos recebem salários indigentes, em contratos de três a seis meses, trabalhando por vezes 50 ou 60 horas semanais em contínuo, eventualmente sem folgas, comendo por vezes restos dos almoços dos turistas e dormindo em espaços exíguos e abafados. Saiamos deste mundo onde está a principal fonte da exportação vinícola do país e vamos para a indústria nortenha, ou para os campos do Alentejo, ou do Oeste, e o que se constata? Que a maioria do país real, a que garante o funcionamento da máquina económica, que tolera a baixa produtividade de uma grande parte da agricultura ou da indústria através de salários baixos e de esforços inauditos não tem representação nos grandes debates nacionais. Esses estão reservados à função pública.
Não, não há nada de mal em discutir a função pública. Nem até em considerar que o seu exemplo e a sua importância justificam a atenção que o Governo e os jornais lhe concedem. O que está mal é que a função pública volte a ser a espinha dorsal, o foco de toda e qualquer discussão política substantiva sobre o futuro. Não é disso que se trata, apenas de legítimas lutas corporativas. Os enfermeiros estão em luta porque exigem a criação de categorias profissionais outrora extintas e reclamam aumentos salariais que podem chegar aos 100% em três anos. Os médicos e os juízes ameaçam com a mesma receita. Os sindicatos querem a completa integração dos precários nos quadros do Estado, com o mesmo salário, mesmo quando desempenhavam funções com horário incompleto. Os políticos dos partidos mais à esquerda batalham pelas progressões na carreira dos funcionários públicos. A melhoria do salário mínimo ajudou os mais pobres, mas até a reforma dos escalões do IRS promete privilegiar esta classe média que exerce funções públicas – os camponeses da Beira ou os operadores das serrações do Pinhal Interior não ganham o suficiente para pagar impostos.
Onde está afinal a atenção do país para os outros? Para os que não têm sindicatos a defendê-los? Para os que não constituem um corpo eleitoral suficientemente sólido e coerente para se constituírem como uma clientela política capaz de atrair a atenção dos partidos? Bem se sabe que este tipo de perguntas tende a gerar sentimentos de inveja e de populismo. Que pode alimentar fendas entre o sector público do sector privado. Que podem instaurar uma cultura de exigência nivelada por baixo, isentando o Estado de servir como exemplo. Mas, depois de tudo aquilo que temos visto e ouvido nestas semanas de despudorado tráfico de influências eleitoralistas, a pergunta é imperativa. Uma questão de grau. O que se discute não é apenas o excesso de atenção que se concede aos funcionários públicos – é também o confrangedor silêncio que paira sobre o resto do país mais pobre, mais atrasado, mais sujeito a condições de vida penosas.
Se o Governo de Passos Coelho exagerou ao eleger a função pública como a principal vítima das políticas de austeridade, o Governo de António Costa exagera ao escolher a função pública como a principal beneficiária da alegada viragem de página da austeridade. Um por falta de recursos, outro por supostamente ter recursos, ambos persistiram no velho hábito da política portuguesa que considera o Estado como o umbigo do país. Entre os cortes salariais e a sua reposição há um percurso justificado pela existência de direitos e de expectativas. Mas, aqui chegados, repostos os direitos e cumpridas as exigências constitucionais suspensas durante os anos de brasa da crise, era bom que se fizesse uma pausa e se olhasse para lá da agenda dos interesses organizados que pululam em torno do Estado. Para as condições que continuam a amarrar a economia real a padrões de rendimento próximos dos países em vias de desenvolvimento. Para o sector privado. E para os que lá trabalham.
O Governo, porém, não parece ir por aí. Talvez porque não quer. Mas, certamente porque não pode. Depois de abrir a caixa de Pandora com o seu discurso falso sobre o fim da austeridade, deixou de ter condições para afirmar que não podemos “dar um passo maior do que a perna”. Uma ilusão patrocinada pelo Governo deixa de o ser e torna-se a verdade. As exigências dos enfermeiros são a prova do sucesso da sua narrativa delirante. Eles, os juízes, os polícias, os sindicatos, o Bloco, o PCP, a Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa acreditam mesmo que Portugal é um milagre de abundância e prosperidade. E eles só querem uma pequena migalha desse maná.
O problema é que a razão pela qual há tantos trabalhadores portugueses mal pagos no sector privado e no Estado é a mesma: não há dinheiro – embora haja empresários com dinheiro mas sem consciência social da sua função. A economia que cresce 3%, na melhor das expectativas, não chega para tudo. Não chega para melhorar as funções essenciais do Estado em áreas críticas para o futuro como a Educação, a Justiça ou a Saúde e, ao mesmo tempo, para aumentar a massa salarial dos funcionários públicos ao nível das expectativas criadas pelo Governo, pelo Bloco ou pelo PCP. Não é uma questão de vontade, nem de desejo. É a triste realidade de um país que ainda não recuperou sequer a riqueza perdida nos anos da troika. Havendo uma pequena folga, é injusto e imoral que seja integralmente apropriada só pelos que se conseguem ouvir.
Olhando à mercearia em que se transformou o debate sobre o próximo Orçamento, vemos que o rumo das coisas é mesmo esse. O Governo prepara-se para fazer mais do mesmo. Como se em causa estivesse uma repetição, a cassete da distribuição de recursos pelos servidores do Estado é a prova de vida de um Governo condenado a cumprir calendário. Sem força para ter uma vontade própria, António Costa e os seus ministros confinam-se ao papel de contabilistas. Não é que os funcionários públicos não mereçam tudo o que reclamam. O problema é que quem mais merece e mais precisa, os jovens ou os vindimadores do Douro, não têm nem os seus rendimentos, nem condições de trabalho, nem o Bloco, nem o PCP nem o novo PS de camisa Gant, discurso modernaço e palavra grave a falar por eles.
2 – É difícil dizer algo mais sobre D. António Francisco dos Santos depois de se ler o magnífico texto de homenagem que Paulo Rangel lhe dedicou, ontem, no PÚBLICO. A não ser que D. António fez justiça ao extraordinário legado que o Porto tem recebido dos seus bispos. Um homem de uma inexcedível afabilidade e simpatia, de transbordante preocupação pelos outros, de abertura aos novos sinais do tempo partiu. Deixou a saudade por tudo o que fez e foi.