Bispo do Porto: quando o granito sorri
Era afável, intimista, fraterno. António Francisco dos Santos, Bispo do Porto, era a encarnação do dito evangélico de que os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros.
1. António Francisco dos Santos, Bispo do Porto, era a encarnação do dito evangélico de que os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros. Era simples, era modesto, era humilde. Sem advérbios e sem gradativos: simples, modesto, humilde. Era afável, intimista, fraterno. Nunca se impunha, apenas se propunha. Numa palavra: aparecia. E com mesma subtileza com que aparecia, desaparecia. Com a mesma força discreta e inspirada com que apareceu, desapareceu-nos.
2. Começava sempre pelas perguntas do quotidiano e da existência, não se alcandorava à transcendência. A saúde, a família, o trabalho, a terra. Achava invariavelmente que as preocupações e a labuta dos outros – dos outros que estavam diante de si, de braço em que invariavelmente entrançaria o seu – eram mais duras e complexas que as tribulações que o cercavam. Ouvia, escutava, mais do que falava. Encorajava, animava, mais do que aconselhava ou advertia. Despedia-se com as fórmulas canónicas, que nele nunca eram onomatopeias mecânicas ou recitadas. Nele, o “boa noite” era mesmo “boa noite”, o “boa viagem” era mesmo “boa viagem”, o “bom almoço” – tal como o buon pranzo semanal de Francisco – era mesmo “bom almoço”. As palavras valiam o que diziam e os gestos significavam o que mostravam.
3. Como o discípulo amado, fazia-se presente na paixão do outro. Onde houvesse dor, ele detinha-se uns momentos; podia ser numa visita, numa celebração, num telefonema, num escrito, num encontro fortuito e casual, mas detinha-se para se dar. Como Zaqueu, não queria nunca deixar passar o essencial sem o ver ou vislumbrar. Mas, ao contrário do publicano, não se empoleirava na árvore; preferia, de pés no chão, espreitar por entre os ombros da multidão. Como Jesus acolhia todos, por mais que fariseus os rotulassem ou escribas os desprezassem. Não fazia perguntas, nem esperava respostas: dava-se, oferecia-se. Estava, simplesmente estava. Estava e deixava estar. Prometia sempre rezar por aqueles com que se encontrava e por aqueles que encontrava, fossem descrentes, crentes ou “assim-assim”.
4. Gostava de sair do Paço, de deambular pelas paróquias, em especial pelas mais longínquas e esquecidas. Gostava da proximidade da gente humilde e devota, sofria e lutava pelos pobres, acreditava num mundo mais justo e mais pacificado. Não era crédulo, mas era crente: achava que era realmente possível transformar o mundo e que cada um tinha nisso um papel, um lugar, uma missão. Não era dado aos salões nem às tertúlias, mas não enjeitava convite algum; e entrava neles e nelas – nos salões e nas tertúlias – com a mesma curiosidade e alegria com que percorria uma romaria ou presidia a uma procissão. Cedo conheceu as forças vivas da diocese e das suas cidades: cultivou-as, visitou-as, afagou-as. Pensava sempre na sociedade civil e nos seus carismas; fugia sabiamente do totalitarismo estatal. Desafiava a autoridade e as autoridades, nunca as desafiando: raras vezes vi alguém que tão ciosamente – numa atitude quase sempre interpretada como de reverente humildade – fosse tão escrupuloso na enunciação dos títulos protocolares. Mas havia aí, nessa prática já quase caduca que parecia contraditar a sua desarmante simplicidade e o seu genuíno apego à igualdade, uma ironia subtil: os mais poderosos e os mais privilegiados eram directamente confrontados com a sua acrescida responsabilidade política, social, cultural.
5. António Francisco era próximo, tão próximo que chegava a ser interior. Não era o bispo profeta, nem o bispo intelectual, que algum Porto sempre espera. Mas, como muitos já se deram conta desde o meio da manhã de ontem, nem por isso deixou de ser, na velha tradição portucalense, um bispo de granito, um bispo carismático. Dos que vai ficar na retina, no coração e na memória; que marcou e marcará profundamente aqueles que o tomavam como pastor, aqueles que conviviam com ele, aqueles que com ele se cruzaram. Este bispo de granito foi um bispo breve. Daquela afabilidade, daquela subtileza, daquela palavra certeira, aberta e meiga, quedará o sorriso. Um sorriso longo, que perdura. António Francisco foi um bispo breve. Um bispo breve de sorriso longo.