"Que país diz aos enfermeiros que outros podem ganhar 1600 euros e eles não?"
Ana Rita Cavaco, bastonária dos enfermeiros, fala da greve de cinco dias que começa nesta segunda-feira. Exige a criação de uma carreira de especialista para os 16 mil profissionais com estas competências. E culpa o Governo pelo extremar de posições.
A bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, diz não concordar com a entrega dos títulos de especialista por parte dos enfermeiros que a partir de hoje e nos próximos cinco dias estarão em greve por melhores condições profissionais. "Há blocos de parto fechados a partir de determinadas horas. Há grávidas a serem empurradas de hospital para hospital. E um Governo a querer dizer que está tudo bem", afirma. Até ao final do ano, vão abrir três novas especialidades reconhecidas pela Ordem, adianta.
O regime jurídico das ordens profissionais diz que estas estão “impedidas de exercer ou participar em actividades de natureza sindical”. Por que tomou a Ordem dos Enfermeiros posição nesta greve e no protesto dos enfermeiros especialistas?
A Ordem dos Enfermeiros não faz, nunca fez nem nunca fará actividade sindical. O que nós queremos é que haja uma solução para o agigantar de problemas. A Ordem tem que estar solidária com os movimentos espontâneos que surgiram porque sabemos o que está a acontecer. Há ano e meio que fazemos o que nos compete, que é alertar e enviar à tutela, aos grupos parlamentares e à comissão de saúde estas questões. É evidente que não podemos deixar de falar das questões da carreira, porque elas interferem gravemente naquilo que é o papel dos enfermeiros. Negociar é com os sindicatos.
Os enfermeiros não têm condições para manter a sua profissão. Um enfermeiro por 40 doentes? Por cada doente a mais, a mortalidade nos hospitais sobe 7%. Um número insuficiente de enfermeiros faz com que a taxa de reinternamentos e o número de infecções aumente drasticamente e se gastem mais 58 milhões de euros por ano. Faltam 30 mil enfermeiros em Portugal. A nossa proposta foi a de contratar três mil enfermeiros por ano, num período de dez anos, e isto custaria 65 milhões de euros, que é 0,6% do orçamento da saúde. Estamos a falar numa coisa ínfima.
Outro dos motivos é a ausência de uma carreira. Significa que não são reconhecidos nas competências que a Ordem lhes atribui, que levam menos de mil euros para casa e que trabalham num Serviço Nacional de Saúde (SNS) que lhes deve dinheiro. O Centro Hospital da Universidade de Coimbra deve 130 mil horas que eles fizeram a mais. O Hospital de São João deve mais de 90 mil.
Nos dois últimos anos, a taxa de absentismo nos enfermeiros duplicou. Temos baixas acima dos 10%. Há um risco muito aumentado de erro clínico. Eles sentem que nunca falharam ao país e Portugal lhes está sistematicamente a falhar.
Revê-se na acusação de que a Ordem está a agir como um sindicato?
Isso é uma desculpa de quem não quer resolver a questão. Por que é a Ordem dos Enfermeiros que está a agir como um sindicato quando alerta para estas situações e não é a Ordem dos Médicos ou outras ordens quando fazem apelos à greve? Se agora o senhor ministro da Saúde nos chamasse para ajudar, nós íamos na hora.
O ministro voltou a chamar-vos?
Não. Mas hoje [sexta-feira] já despachei situações de dezenas de hospitais relativas a enfermeiros insuficientes.
Referentes a estes dias de protesto?
Sim e antes disso. Desde que tudo isto começou [em Julho], e como não obtínhamos resposta, tive que optar por dar conhecimento da situação ao senhor Presidente da República e ao senhor primeiro-ministro. Já pedimos que houvesse um modelo de atribuição do título similar àquele que é utilizado para os médicos, que é o internato. Porque hoje os enfermeiros vão fazer a especialidade, do seu bolso, em horário pós-laboral, e o Estado depois quer usar dessas competências.
Tiveram resposta do ministério?
Não. E o próprio ministério vai pedindo à Ordem que aumente o número de especialidades. Neste momento existem seis [enfermagem comunitária, médico-cirúrgica, de reabilitação, de saúde infantil e pediátrica, de saúde materna e obstétrica e saúde mental e psiquiátrica], com 16 mil enfermeiros. Até ao final do ano, vamos criar mais três: saúde familiar, cuidados paliativos e perioperatório. Em 2005, congelaram a progressão. Em 2009, acabaram com a carreira de especialista. Por um lado o Governo quer especialistas, mas depois isso não tem nenhuma correspondência na carreira.
É militante do PSD e membro do Conselho Nacional do partido. O seu apoio a este protesto, em véspera de eleições autárquicas, é uma questão política?
Não. Eu nunca escondi o cargo que tinha no PSD, até porque acho que o mal é haver poucos enfermeiros com intervenção política. E eu sou do braço esquerdo da social-democracia. Tenho um vice-presidente que é candidato a uma câmara socialista, tenho militantes do PCP, do CDS-PP, do Bloco.
Disse desde o início que não ia admitir que se fizesse política com a vida das pessoas. Não há partidos aqui dentro. Nas minhas intervenções no Conselho Nacional do PSD, para o qual fui sempre eleita por listas independentes, fui a maior crítica do ministro Paulo Macedo, no governo anterior. Se hoje o partido do governo fosse o PSD estaríamos exactamente na mesma situação.
Que adesão espera a esta greve?
Não consigo dizer. Sei que muitos enfermeiros nos escrevem e ao senhor Presidente da República dizendo que já nem se importam de ser despedidos. É um cansaço tal. Perante isto tudo, porque não se negoceia uma carreira com os enfermeiros? O Governo fechou carreiras com os técnicos de diagnóstico e terapêutica em plena greve. Fez a mesma coisa para os farmacêuticos, com os psicólogos e nutricionistas relativamente aos salários em início de carreira. Qual é o país que tem a coragem de dizer aos enfermeiros que todos os outros licenciados que trabalham na área de saúde e que não sustentam o SNS — porque quem está lá a vigiar as pessoas são os enfermeiros — vão ganhar 1600 euros ilíquidos e eles não? Os enfermeiros ganham 1200 euros ilíquidos, tenham um ou 20 anos de experiência profissional.
Com a criação da categoria de especialista, os enfermeiros querem passar dos 1200 euros brutos mensais para os 2400 euros brutos, ao longo de três anos. É o dobro. É realista reivindicar um aumento deste calibre?
Tem que haver uma diferenciação entre o enfermeiro de cuidados gerais e um enfermeiro especializado. Pode parecer o dobro. Mas, até agora, o sindicato não teve uma contraproposta.
Para além da greve há o protesto dos enfermeiros especialistas em saúde materna e obstétrica, a decorrer desde Julho. Recusam prestar cuidados especializados e há uma semana disseram que iam entregar os títulos de especialista à Ordem. Quantos pedidos destes já receberam?
Não temos números. Temos os requerimentos a entrar e que têm que ser apreciados. Os enfermeiros organizaram-se autonomamente e ninguém os controla. Ninguém está a fazer isto ou aquilo aos enfermeiros, eles pensam sozinhos.
O ministério diz que a entrega dos títulos profissionais “não é legalmente possível” e pode levar a faltas injustificadas e acções disciplinares. Concorda com esta forma de protesto?
Quando iniciaram a entrega de títulos, nós tentámos demovê-los desse caminho. Dissemos sempre que entendíamos que esse não era o melhor caminho. Agora, se eles avançaram, a Ordem é obrigada a apreciar. Mas eu pessoalmente e a Ordem não somos fãs desta forma de protesto.
A Procuradoria-Geral da República também disse, num parecer, que os enfermeiros podem ser sancionados civil e disciplinarmente por se recusarem a prestar cuidados especializados. Sabe se já foram abertos processos?
Que tivessem sido abertos, não. Que tenham sido ameaçados, sim. Há muitas ameaças dos conselhos de administração.
Não receia que algo possa correr realmente mal?
Muito, muito. Todos os dias. Mas quem tem a responsabilidade máxima de proteger e manter as pessoas em segurança são o senhor ministro da Saúde e o senhor primeiro-ministro.
Os médicos já se prontificaram a ajudar e a realizar tarefas normalmente atribuídas a enfermeiros. Eticamente não é discutível que médicos estejam a optar por uma resposta que não existiria em circunstâncias normais?
Não posso dizer, porque não tenho nenhum dado para isso, que os médicos estão a agir bem ou mal.
Como é que os hospitais estão a reagir ao protesto?
Uma confusão. Blocos de parto fechados a partir de determinadas horas. Há grávidas a serem empurradas de hospital para hospital. E um Governo a querer dizer ao país que está tudo bem.
Quais são os hospitais mais afectados?
Só hoje despachei queixas dos hospitais de São João, Santa Maria, Vila Nova de Gaia, Guimarães, Braga, Leiria, Médio Tejo, Caldas da Rainha, Centro Hospitalar do Porto.
Temos uma situação muito grave em Ponta Delgada. Como eles têm mais dificuldade em ter enfermeiros, nomeadamente especialistas, o que é que se lembraram de fazer? Vieram buscar ao continente duas enfermeiras especialistas, a pagar 5200 euros por mês por 65 horas por semana. Isto ultrapassa tudo aquilo que é aceitável do ponto de vista da segurança. E pagam a viagem e a estadia. Estavam duas enfermeiras nesta situação no mês de Agosto.
Se somarmos este exemplo, as grávidas a serem enviadas para o privado à custa do público, os médicos a pedirem horas extraordinárias, não está aí o dinheiro que podiam dar aos enfermeiros na carreira nova? Porquê esta intransigência do Governo?