Visita guiada às grutas da nascente do Almonda com o advogado dos neandertais
São 500 mil anos de história em 70 metros de escarpa. Várias grutas mostram com pontas de sílex, ossos queimados e ferramentas em pedra que quem viveu na planície do Tejo sabia onde se refugiar. O arqueólogo João Zilhão escava-as há 30 anos e vai continuar a fazê-lo. Há ali trabalho para mais 200.
Junto à água, virado para a entrada da grande Galeria da Cisterna, João Zilhão vai apontando para a parede rochosa que tem à sua frente enquanto enumera outras grutas: da Lapa dos Coelhos ali bem perto à do Pinheiro, no topo da escarpa, passando pela dos Ursos, a da Oliveira e, claro, a da Aroeira, que se converteu na estrela deste sítio arqueológico quando, em 2014, ali foi encontrado um crânio com 400 mil anos, o fóssil humano mais antigo descoberto em Portugal.
Todas fazem parte de um complexo sistema subterrâneo que tem hoje mais de 12 quilómetros de galerias reconhecidas e que no passado terá sido usado por diversas populações que viveram na região, quando aquele território era, também em termos geológicos, bem diferente do que é hoje, explica este arqueólogo de 60 anos, que ali começou a trabalhar em 1987.
“Foram precisos 30 anos para que aparecesse um fóssil humano como este no Almonda, que é rico em [vestígios de] fauna e indústria acheulense [utensílios bifaces de pedra do Paleolítico Inferior]. É por isso que digo sempre que aqui temos trabalho para mais 200 anos”, diz ao PÚBLICO João Zilhão, enquanto sobe a encosta íngreme que conduz à Gruta da Aroeira, onde um pequeno grupo de arqueólogos formado por um português e quatro espanhóis (alguns catalães, farão questão de corrigir mais tarde) está a trabalhar desde as primeiras horas do dia. No laboratório de uma povoação próxima, outros colegas limpam, restauram e inventariam as peças que vão saindo da escavação feita apenas com o apoio da Câmara Municipal de Torres Novas. “A formação faz-se no campo. É muito importante que os mais novos possam participar em projectos assim.”
Nos últimos 15 anos este arqueólogo que já deu aulas em Portugal, França e Inglaterra e que agora está ligado à Universidade de Barcelona concentrou a sua investigação no período de transição do Paleolítico Médio para o Superior, o que o levou a escavar no abrigo do Lagar Velho (Leiria), onde identificou a sepultura de uma criança com cerca de 25 mil anos que ficaria conhecida como o Menino do Lapedo e cujo esqueleto apresenta características comuns aos neandertais e ao homem moderno; no sítio de Pestera cu Oase, noutro sistema de galerias, nos montes Cárpatos (Roménia), onde foram encontrados os vestígios mais antigos de humanos modernos na Europa; na Cueva Antón, na região de Múrcia (Espanha), onde conchas pintadas e perfuradas indicam, defende Zilhão, que os últimos neandertais tinham um grau de sofisticação que até então não lhes era reconhecido.
Os trabalhos neste complexo de grutas do Almonda, afluente do Tejo, em sucessivas campanhas de Verão em que participaram muitos portugueses e estrangeiros ao longo das últimas três décadas, também se inscrevem nesta linha de investigação.
João Zilhão conta que o sítio do Lagar Velho – o local da Sepultura do Lapedo – venha a ser escavado em 2018, ano em que o Museu Nacional de Arqueologia (MNA), em Lisboa, deverá receber uma exposição sobre evolução humana com base no espólio recolhido em escavações em que participou, na maioria liderando a equipa. A Aroeira estará, naturalmente, em grande destaque, mostrando, diz António Carvalho, director do MNA, que “em Portugal se têm feito descobertas muito significativas no âmbito da evolução humana” e que o debate à volta dela mudou muito.
“Quando propusemos, a partir do Lapedo, que tinha havido uma mistura [entre neandertais e homens modernos, a nossa espécie], um cruzamento, a polémica foi grande – o debate era ‘hereges contra a ortodoxia’. E agora essa miscigenação é que é a ortodoxia. O Lapedo – o contexto da ocupação humana – ainda pode trazer muita coisa. Bem financiado, é um projecto para mais cinco ou seis anos de trabalho”, garante Zilhão.
É precisamente na Sepultura do Lapedo que termina cronologicamente o guião da exposição em que este professor e o MNA estão a trabalhar. Os materiais já foram escolhidos – os do Lapedo estão em depósito no museu há anos e nunca foram mostrados em Portugal –, mas não se sabe ainda quando é que a exposição abre nem quanto tempo fica.
“Esta é uma oportunidade muito boa para o MNA abordar um tema importantíssimo, ainda mais interessante para nós, porque se quer mostrar coisas que saíram de escavações em Portugal envolvidas em investigação científica de ponta. E não tendo o museu uma exposição permanente, esta é também uma hipótese de mostrar peças fundamentais que estão em reserva”, diz o director do MNA.
Para Zilhão, é a maneira de cumprir mais uma etapa do processo – a partilha do espólio que resultou dos trabalhos e do conhecimento que ele gerou com o público, provando que uma intervenção como a que foi feita no Lagar Velho ou no Almonda não é só “pedra e ossos”: “Aqui [no Almonda] não se trata só de evolução humana e geologia. Uma escavação como esta vai da física atómica à filosofia e é isso que torna as coisas interessantes.”
Arqueólogos de fato-macaco
Foi aos 14 anos que começou a explorar as grutas labirínticas do Almonda com o liceu. Nessa altura eram precisas cinco horas de autocarro para ligar Lisboa, onde vivia, a Torres Novas. Zilhão e os colegas dormiam na Galeria da Cisterna, a mesma onde acabaram por descobrir a entrada para uma outra gruta, a da Oliveira, que guardava, viriam a saber mais tarde, fósseis e ferramentas de neandertais datados de há 65 mil a 35 mil anos, o que contribuiu para a teoria de que a Península Ibérica serviu de reduto para os últimos sobreviventes desta espécie humana extinta.
A primeira das campanhas de escavação em que esteve envolvido no Almonda aconteceria só em 1987, com amigos da Sociedade Torrejana de Espeleologia e Arqueologia (STEA), e dela resultaram pontas de sílex com 25 mil anos e restos humanos com cerca de 13 mil. Só dois anos mais tarde dariam com a entrada da Oliveira, usada no tempo dos neandertais (Paleolítico Médio, entre 50 a 100 mil anos): “Foi em meados de Setembro, lá pela uma da manhã. Foi incrível.” Começaram a escavá-lo no ano seguinte e só terminaram em 2012.
Quem hoje entra nesta gruta, que a um não-espeleólogo pode parecer relativamente exígua, e percorre os passadiços metálicos apercebe-se dos desafios que enfrenta quem ali trabalha: “Isto é só para arqueólogos que estão habituados a fato-macaco”, diz João Zilhão. “Aqui na rede do Almonda é preciso ser espeleólogo primeiro e só depois arqueólogo. E não é só uma questão de destreza ou de segurança – trata-se de compreender o ambiente em que se está a trabalhar, de saber como se comporta a rocha ou a que se deve determinada formação na parede.”
Pelo meio, no final da década de 1990, entraram em escavação as grutas da Lapa dos Coelhos e da Aroeira. Na primeira, o português Francisco Almeida e os que com ele escavaram identificaram um depósito do Paleolítico Superior (35 mil a dez mil anos), com sílex, restos de animais e peças em osso, entre elas anzóis. “A Lapa é muito interessante porque nela está documentada a pesca de rio – sável, barbo, truta…” Na segunda, a equipa do norte-americano Anthony E. Marks, da Universidade Metodista de Dallas, localizou bifaces (instrumentos pré-históricos em pedra, usados para cortar) e dois dentes humanos.
Anthony Marks escavou cinco anos na Aroeira (1997-2002), mas deixou, na opinião de Zilhão, espaço ao desenvolvimento da investigação: “Para mim há um princípio fundamental na arqueologia de grutas – o trabalho só acaba quando se chega à rocha que está na base. O Anthony preferiu terminar antes e foi por isso que, depois de lhe ter dado tempo [dez anos] de publicar o que ele tinha a publicar [sobre a Aroeira], resolvi voltar lá.”
Em 2013 a equipa de Zilhão chegou à rocha de base e, no ano seguinte, e porque antes aparecera um cantinho com ossos queimados, uma prova da existência de fogo controlado que “era das mais antigas da Europa”, resolveu dar continuidade à escavação: “Abrimos outros dois metros para tentar saber mais sobre o uso do fogo e foi aí que apareceu o crânio.”
Este crânio, assegura Zilhão, tem uma datação muito precisa porque o manto de calcite da gruta assim o determinou. Expliquemos: “A calcite aqui da Aroeira foi datada com o método de urânio-tório, que é muito exacto porque tem um intervalo que é, no máximo, de 20 mil anos. Datando o manto de calcite, sabemos que o que está por baixo é mais antigo.”
Este fóssil, que se partiu no processo de escavação, foi reconstituído e restaurado no laboratório da Universidade Complutense de Madrid, um processo “muito complicado” que durou dois anos e contou com a participação de Juan Luis Arsuaga, co-director das escavações na Serra de Atapuerca, cenário de um importante sítio arqueológico que é património mundial e onde foram encontrados fósseis semelhantes. “A morfologia interna de um crânio com 400 mil anos não é igual à nossa. O seu restauro exige muitas comparações e é muito demorado.”
Fogo domesticado
O crânio da Aroeira vem juntar-se ao chamado “debate das espécies” em que Zilhão está envolvido há anos: “Estou sempre à espera que me perguntem a que espécie pertence isto ou aquilo. Em relação a este crânio, a resposta é muito simples – pertence à espécie humana, que é a única que existe. Há 400 mil anos não há senão uma espécie humana, mas mais diversa [do que hoje]. Porquê? Porque os humanos eram muito menos e as suas populações viviam muito mais isoladas umas das outras. A humanidade actual é que é anormalmente homogénea em comparação com a heterogeneidade do passado.”
Diversos e capazes de domesticar o fogo: “Este crânio, datado com precisão, mais os ossos de animais queimados que ali tínhamos encontrado, ajuda-nos a dizer que, há 400 mil anos, já se usava o fogo para cozinhar ou para aquecer.”
No entanto, lembra a revista Science que, entre os que mais criticam as teorias de Zilhão e de outros colegas que o apoiam está o antropólogo francês Jean-Jacques Hublin, que defende que as jóias dos neandertais (conchas pintadas há 45-50 mil anos descobertas em Espanha, por exemplo) resultam de um fenómeno de aculturação com o homem moderno e que são muito menos sofisticadas. Hublin é da opinião que se trata de espécies distintas que viveram separadas durante centenas de milhares de anos – negar isto é, para este francês, negar a própria teoria da evolução das espécies.
Já no topo da escarpa, junto à Gruta do Pinheiro, que serviu de covil a hienas, João Zilhão explica que quem ocupava aquele território há 400 mil anos vivia na planície do Tejo, que se vê da encosta sul. Lá caçaria cavalos, auroques e veados, usando as grutas onde os arqueólogos têm vindo a trabalhar como refúgio, muito provavelmente no Verão, já que na altura se atravessava um “período de sobreaquecimento global”.
Até à visita do PÚBLICO, a campanha arqueológica de 2017 na Gruta da Aroeira rendera já diversas ferramentas em pedra e fragmentos de tartaruga, cavalo, veado e macaco. “Recuperámos uma mandíbula de macaco”, diz Montserrat Sanz, uma catalã especializada em fauna, chamando a atenção para a singularidade do achado no que toca à Península Ibérica, antes de se juntar a Joan Daura, outros dos colegas arqueólogos, para conversar sobre a importância do primeiro referendo sobre a independência da Catalunha a 1 de Outubro, qualquer que seja o resultado: “O referendo é já uma vitória. Se o resultado for expressivo a favor da causa independentista, mesmo que ela não vença, há coisas que terão de mudar.”
Joan e Montserrat estão habituados a esta rede de grutas da nascente do Almonda que, explica João Zilhão, é como um bloco de apartamentos em que cada janela nos permite olhar para uma época diferente do território, acompanhando os que o escolheram para viver. “Temos aqui documentados 500 mil anos de história e só agora começámos.” Entre a nascente do rio, na galeria cuja entrada está hoje ao nível da água que enche a represa junto à velha fábrica de papel (a da Cisterna), e o topo do penhasco, onde fica a Gruta do Pinheiro, são cerca de 70 metros. “À medida que vamos subindo na escarpa recuamos no tempo [no que diz respeito aos vestígios encontrados]. O rio nunca nasceu em cascata lá de cima – os terraços que hoje temos foram criados pelo tempo.”
É o facto de permitir o estudo de vários períodos ao mesmo tempo que torna este sistema de galerias singular, defende o arqueólogo português. “É uma situação única na Europa porque são jazidas de épocas diferentes e permitem perceber como se explorou o mesmo lugar em função da demografia, do clima, das tecnologias usadas.”
Um peso-pesado
O sistema de grutas do Almonda ainda tem muito para contar, mas para isso é preciso que as equipas não deixem de trabalhar no local, o que hoje só é possível porque alguns estão com bolsas de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, porque a câmara de Torres Novas continua a apoiar o projecto e porque a Renova, empresa que é dona da velha fábrica junto à nascente, fornece a electricidade.
“No âmbito universitário as coisas melhoraram muito nos últimos 15 anos, mas no que toca às instituições ligadas à cultura, o desinvestimento e a falta de objectivos claros para esta área está a dar cabo de tudo o que já se tinha conquistado a nível científico.”
Zilhão, que esteve na origem do Parque Arqueológico do Côa, hoje património mundial, e do entretanto extinto Instituto Português de Arqueologia, de que foi o primeiro director, não quer falar de políticas culturais, mas diz que Portugal tem um potencial imenso que continua a ser explorado graças a parcerias internacionais: “No Almonda já tivemos pessoas de 20 nacionalidades a trabalhar. Acredito que, se formos mais para oeste, para os lados da Lapa do Coelho, encontraremos outras grutas onde será possível recuar mais de 400 mil anos. Se temos bons problemas para resolver, as pessoas lá fora interessam-se por eles e vêm.”
Isso acontece no Almonda, como acontecera já no Lagar Velho, que fomentou um intenso debate internacional e que ajudaria a fazer de Zilhão um peso-pesado – expressão que parece francamente deslocada quando nos confrontamos com a sua figura esguia – na discussão sobre a inteligência dos neandertais.
Zilhão está habituado à controvérsia. As suas posições geram, por regra, opiniões extremadas e isso parece agradar-lhe. Se lhe perguntamos o que sentiu quando em 2013 a sequenciação do genoma de um neandertal que viveu há 50 mil anos deixou claro que as pessoas de hoje não originárias de África têm entre 1% e 3% de ADN desta espécie humana que surgiu na Europa e na Ásia há uns 400 mil anos e se extinguiu há 28 mil, sorri: “Que os dois se tinham misturado era já muito claro. A quantificação não é importante, até porque termos hoje entre 1 e 3 ou 4% de ADN neandertal não nos deve levar a pensar que, há 40 mil anos, a proporção era a mesma.”
E nada de olhar para os neandertais com a ideia pré-concebida de que seriam, de alguma forma, inferiores, adverte este arqueólogo que começou por estudar economia: “Há uma grande proximidade biológica e cultural entre os neandertais e os humanos modernos. Porquê? Porque só há uma espécie que evoluiu. Não houve uma competição entre várias espécies coexistentes em que só uma sobreviveu.”
Hoje Zilhão é conhecido, pode ler-se no seu perfil publicado pela revista Science, como “o mais feroz advogado dos neandertais”, por defender, contra qualquer um, que não seriam inferiores aos humanos modernos.
“Depois de provada a mistura, a hibridização, há ainda quem diga que todas as conquistas dos neandertais são aprendizagens, aculturações dos humanos modernos, que eles não inventaram nada e que eram cognitivamente inferiores. É absurdo e prova que há mesmo quem tenha um preconceito contra eles.”
A investigação há-de continuar a encarregar-se de demonstrar que, quem pensa assim, está simplesmente errado, conclui João Zilhão. Ele trabalha para isso.