Paisagens interiores no delírio da selva

A escrita de Werner Herzog acompanha na sua paixão o espanto perante a inutilidade de um sonho, perante a felicidade de tentar realizar o inútil.

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Werner Herzog

O cineasta alemão Werner Herzog (n. 1942) voltou várias vezes à Amazónia, entre 1979 e 1981, depois de lá ter rodado o filme Aguirre, a Ira de Deus (1972). Destas vezes, a razão foi a preparação para a filmagem de um argumento (Fitzcarraldo, 1982) baseado na vida de uma figura histórica, o barão da borracha Carlos Fermín Fitzcarrald, que quis transportar um barco a vapor através de uma montanha e levar a ópera à selva. Herzog quis filmar a história desse sonho. A Conquista do Inútil é o seu caderno de campo, não um diário das filmagens (que pouco são referidas) mas antes, e usando as suas palavras, “paisagens interiores nascidas do delírio da selva”. Durante 24 anos Herzog não conseguiu ler estes apontamentos, mas um dia, de repente, tudo se lhe tornou fácil — a dificuldade foi decifrar a sua própria letra (fê-lo com a ajuda de uma lupa), “reduzida então a uma dimensão microscópica”. Resistiu à tentação de editar os seus próprios textos, mantendo o seu estilo peculiar de frases urgentes, por vezes com uma ou outra entrada mais hermética, e deixando transparecer a razão desta escrita: ser uma âncora que o prendia à sanidade num meio de loucura, uma estratégia de sobrevivência numa paisagem irreal que parece abandonada por um “deus irado” e onde os pássaros não cantam mas “gritam de dor”, onde as árvores querem agarrar-se umas às outras, tudo sob a névoa de uma criação que parece ainda por concluir.

Todo o projecto de filmar Fitzcarraldo, desde o início, parecia condenado ao fracasso: houve dificuldades de financiamento, problemas políticos no território dos índios aguaruga, uma guerra iminente entre o Equador e o Peru (as terras aguaruga ficam na fronteira), acusações de Herzog querer exterminar os indígenas e de os maltratar, problemas com o actor principal (mais tarde desistiu, já com as filmagens avançadas, e foi substituído por Klaus Kinski, “o melhor inimigo de Herzog” — chama-lhe no brilhante prefácio a tradutora Manuela Ribeiro Sanches). E numa natureza tão adversa, com aquela “humidade sufocante que tudo mata”, Werner Herzog escreve contra o infortúnio, contra a autodestruição a que parece entregue, como se a escrita urgente destes cadernos fosse uma tentativa de deixar para a posteridade a sua visão caso a morte chegasse — o que não era uma ideia dispicienda naquelas condições. “Por instantes, fui invadido pela sensação de que o meu trabalho, a minha visão, irá destruir-me, e permiti-me, por um breve momento, um olhar sobre mim mesmo que noutras circunstâncias nunca toleraria: por instinto, por princípio, por uma pulsão de sobrevivência — um olhar de curiosidade objectiva para verificar se não estaria já destruído. Tranquilizou-me o facto de ainda respirar.”

A Conquista do Inútil é a história de uma experiência existencial, a história de um, ou melhor, de dois, sonhos megalómanos, o perseguir da grande metáfora que é a luta primordial do homem perante uma natureza imprevisível, diante de uma selva obscena onde nada cicatriza. E a escrita de Herzog, na sua paixão sem freios, acompanha o espanto perante a inutilidade de um sonho, perante a felicidade de tentar realizar o inútil, e esse assombro é descrito de maneira sublime (a fazer lembrar as descrições de paisagens Humboldt quando se vê pela primeira vez diante do desconhecido): “Na margem oposta, amontoam-se rochedos oblíquos, lisos. Um tronco de árvore despido, que arrojou com a enchente, cravou-se na superfície saliente dos rochedos.”

Estes relatos de Herzog, e muito à semelhança do filme Fitzcarraldo, são por vezes incómodos na sua rudeza e arrogância, numa escrita que não se compadece com quase nada (a excepção são as crianças, com que por vezes parece querer sublinhar a loucura dos dias da sua vivência na selva), uma escrita que transfigura ao extremo os acontecimentos do quotidiano: “o comandante disse-me, com um certo entusiasmo no olhar, que gostava de foder pessoas e de matar pessoas”.

Muitos dos dias descritos nestes cadernos de campo foram passados em aldeias indígenas na selva do Peru, ou em Lima e Iquitos, mas também em São Francisco e Los Angeles (para além de outros lugares como Manaus, Rio de Janeiro ou Belém do Pará), lugares onde o cinema e os seus “actores” estão sempre presentes, desde produtores a realizadores — são várias as notas dos contactos com Coppola ou Kubrik. A arte cinematográfica, na sua artificialidade, surge quase sempre como um veneno que vem pôr enfase na loucura da realidade: “Um jovem com ar inteligente e cabelo comprido perguntou-me se filmar ou ser filmado poderia causar danos, se poderia aniquilar uma pessoa. O meu coração dizia-me que sim, mas eu disse-lhe que não.”

Outro dos aspectos importantes desta escrita de Herzog é a sua clara dimensão política, de como conseguiu lidar com os problemas indígenas e de território (ou não conseguiu, pois o fracasso esteve sempre presente e o acampamento erguido para as filmagens acabou destruído). São múltiplas as referências à exploração dos índios por parte da indústria aurífera e petrolífera, isto para além da conduta da produtora do filme que teve o cuidado de construir um centro de saúde que acabou a funcionar como hospital, bem como outras contrapartidas — o que não se mostrou suficiente.

A Conquista do Inútil é sobretudo um “livro de viagens”: viagens a distantes geografias, feitas por vezes em aviões sobrelotados e noutros cujos pilotos se esqueciam de reabastecer, passando ainda por deslocações de mota em estradas esburacadas e por jangadas carregadas que desciam rápidos assassinos. Movendo-se entre o sonho e a sua impossibilidade, com a cor do fracasso sempre no horizonte, Herzog mostra, entre outras coisas, como a natureza, na sua agressividade, é impossível de domar.

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