Incêndios, caçadores e autoridades: interesse geral e interesses particulares

Com cobertura da autoridade policial, quem quis caçou no dia 20 de Agosto em concelhos objecto de declaração de calamidade pública.

Na nossa vida quotidiana vemo-nos por vezes confrontados com a sobreposição de interesses ou de valores de natureza diversa situados em planos diferentes, embora sejamos sensíveis a uns e a outros. Muitas vezes conseguimos compatibilizá-los. Mas quando temos que optar, nessas alturas o interesse geral deveria sempre sobrepor-se aos interesses particulares.

Ficou, aliás, para a história da democracia portuguesa o exemplo de Francisco Sá Carneiro quanto à ordem de prioridades que definia sem tergiversações no enquadramento político da República: primeiro (sempre) Portugal, depois a democracia e finalmente a social-democracia.

Vem isto a propósito da Declaração de Calamidade Pública “com efeitos preventivos” que o Governo decretou em Agosto último em 155 concelhos do país, tentando legitimamente conter os incêndios florestais que as previsões meteorológicas anteviam para os dias seguintes, que incluíam a abertura da caça em 20 de Agosto.

O diploma do Governo — curiosa a original figura de declaração de calamidade pública preventiva — proibia o acesso, a circulação e a permanência no interior dos espaços florestais previamente definidos nos Planos Municipais de Defesa da Floresta contra Incêndios (PMDFI), bem como nos caminhos florestais e rurais e noutras vias que os atravessassem, ficando (apenas por breves dias) proibidas naqueles concelhos quaisquer actividades de caça, de pesca, desportivas ou outras em zonas cujo acesso fosse feito por caminhos florestais ou rurais.

Parecia pois inequívoco que, em todos os 155 concelhos, o interesse geral de proteger pessoas e bens das consequências de possíveis fogos florestais se sobreporia aos interesses particulares de caçadores, pescadores, passeantes, turistas e desportistas, e que estes não só o aceitariam pacificamente como se empenhariam no sucesso de tão drástica, embora temporariamente limitada, medida.

O facto de em alguns concelhos não existir PMDFI, e de em outros se aguardar a aprovação da respectiva revisão por parte do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), não deveria constituir razão bastante para não ser neles dado cumprimento à substância do diploma governamental, pois o bom senso e a vontade de evitar mais incêndios deveriam ser comuns a todos os interessados, em particular aos que têm responsabilidades institucionais e politicas.

Mas como em Portugal muitas vezes a realidade e a ficção se sobrepõem, a falta de bom senso na gestão operacional deste tema começou, pasme-se, pela própria GNR, cujo Comando Territorial de Beja esclareceu que nos concelhos de Mértola, Almodôvar e Odemira, atendendo a que os respectivos perímetros florestais “não estão abrangidos por nenhum plano municipal neste momento”, podia libertar o acesso das pessoas a esses espaços, “não havendo matéria para proibir a caça, porque os planos municipais não estão em vigor”.

O presidente da Câmara de Almodôvar pegou na deixa, e anunciou que a caça “era permitida”, até porque, “não obstante não haver plano aprovado, não existe qualquer restrição, tendo em conta que o Comando Distrital da GNR não o impediu”.

O presidente da Câmara de Odemira tentou sensatamente contrapor que, apesar de aguardar a “aprovação do ICNF” à revisão do respectivo PMDIF, “recomendámos que não houvesse caça. Não vem mal ao mundo, pelo contrário, devemos prevenir o mais possível” para evitar incêndios, salientando terem sido as associações de caça local “elas próprias que avançaram com a ideia de que não caçavam”.

A realidade é que, com cobertura da autoridade policial, quem quis caçou no dia 20 de Agosto em concelhos objecto de declaração de calamidade pública, num ano em que os incêndios florestais já mataram dezenas de portugueses.

Isto deve fazer-nos legitimamente reflectir sobre a ligeireza e as razões que levaram autoridades com enormes responsabilidades públicas a secundarizar o interesse geral que são supostas defender, e a contemporizarem com interesses sectoriais que, sendo legítimos, nunca poderiam, naquele momento em particular, ter-se egoisticamente sobreposto ao interesse geral.

Por que será que portugueses membros de associações de caçadores de três concelhos pensaram a sua cidadania de modo diverso? Por que será que autoridades policiais portuguesas de Beja menorizaram o interesse geral em relação a interesses sectoriais? Por que será que autarcas portugueses de três concelhos exerceram a legitimidade do seu cargo de forma diferente? Terão as eleições autárquicas do próximo dia 1 de Outubro influenciado algumas decisões? Porque não pôs o Ministério da Administração Interna imediatamente cobro a esta situação mal se deu conta dela?

Felizmente nenhum incêndio eclodiu naqueles dias naqueles três concelhos alentejanos. Mas se isso tivesse acontecido com as consequências a que Portugal tem assistido noutros concelhos, certamente algumas pessoas nunca mais conseguiriam conciliar o sono até ao fim das suas vidas.

Sou, e digo-me com orgulho, caçador. Antes disso (ou o que seja) sou social-democrata, antes ainda sou democrata. Mas primeiro que tudo, somos portugueses. E isso obriga-nos a uma particular e indeclinável responsabilidade para com os nossos compatriotas que não podemos nunca menorizar, sobretudo naqueles momentos tormentosos em que a palavra-chave é solidariedade, o sentimento é entrega e a atitude só pode ser altruísmo.

Sugerir correcção
Comentar