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Ilegal e imoral

A Ordem dos Enfermeiros parece agir simplesmente de forma ilegal.

Não sei se os enfermeiros "especialistas"” têm alguma razão na sua reclamação no âmbito da sua carreira profissional. Admito que, por mero bom senso, em termos gerais e não conhecendo as carreiras do SNS, alguém que desempenhe funções que exijam um grau superior de qualificação e de especialização deva ser mais bem remunerado do que alguém com uma formação de base generalista. Desde logo no SNS que, não esgotando o universo da contratação de profissionais de saúde, acaba seguramente por funcionar como padrão para o emprego na área. Mas isto pode perfeitamente não fazer sentido em termos absolutos para a enfermagem, do mesmo modo que, por exemplo, na carreira de professor universitário do ensino público, o último escalão salarial de professor auxiliar traz consigo um salário superior ao de alguém que seja um recente professor associado e, portanto, mais “graduado”.

Agora, as duas ou três coisas que sei no tema – e o tema, diga-se claramente, é um protesto laboral encabeçado por uma associação pública que pode pôr em causa a saúde de crianças, nascidas e por nascer, e de mães nos hospitais públicos – são bastante graves.

Começando pela estrutura corporativa que legitima e encarniça o protesto, a Ordem dos Enfermeiros. A ninguém parece estranho que seja uma ordem profissional, ou seja, a entidade pública com competência disciplinar e deontológica sobre os enfermeiros, a encabeçar um protesto por aumentos salariais no Serviço Nacional de Saúde? Pode uma ordem profissional, que é legalmente uma associação pública, inventar estratagemas burocráticos para tentar legitimar falhas profissionais e aconselhar os seus membros a não exercerem as suas funções, em detrimento dos seus deveres profissionais e deontológicos? Ninguém acha que há aqui, no mínimo, um claro conflito de interesses?

Como diz a lei, as ordens profissionais são “entidades públicas de estrutura associativa representativas de profissões que devam ser sujeitas (…) ao controlo do respectivo acesso e exercício, à elaboração de normas técnicas e de princípios e regras deontológicas específicas e a um regime disciplinar autónomo, por imperativo de tutela do interesse público prosseguido”. E às ordens profissionais cabe em primeiro lugar a “defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços”, no caso os utilizadores do SNS, e só depois a “representação e a defesa dos interesses gerais da profissão” – mas em caso algum lhes cabe a sua representação na definição de salários ou de outras condições profissionais. Como poderia aliás a mesma estrutura ser responsável pela fiscalização e aplicação de sanções disciplinares aos seus associados e assumir-se em simultâneo na defesa da suas reivindicações laborais?

Aliás, por isso mesmo se proíbe às ordens profissionais substituírem-se aos sindicatos: “as associações públicas profissionais estão impedidas de exercer ou de participar em actividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros.”. Ou seja, a Ordem dos Enfermeiros parece agir simplesmente de forma ilegal. Os parceiros negociais de um empregador, seja ele o Estado, seja um privado, são os sindicatos, não as ordens profissionais. Assim o determina a Constituição e a lei.

Mas, para além do que a lei estabeleça, há um dado que é inquestionável. E que me surge como inaceitável e imoral. E o dado é este: um grupo profissional, para fazer vencer o seu argumento, tomou literalmente como reféns alguns daqueles dos que entre nós estão numa situação de maior fragilidade, como as grávidas, as parturientes, as mães e os pais recentes ou as crianças recém-nascidas. E isso é inaceitável.

Há um grupo profissional que conta com o medo dos seus concidadãos para fazer vingar uma posição negocial junto de um governo. E conta também com o temor e a dependência que se sente dos profissionais quando se utiliza um serviço de saúde para garantir o seu silêncio, a sua falta de protesto.

Há um grupo de pessoas e uma ordem profissional que transformaram basicamente os enfermeiros portugueses numa classe de irresponsáveis que não respeitam suficientemente a sua profissão e aqueles a quem supostamente dedicam a sua vida profissional ao ponto de os usar displicentemente como reféns no seu protesto salarial. Não é a primeira vez que isso acontece, mas é a mais grave. E tem razão a senhora bastonária da Ordem dos Enfermeiros, quando diz publicamente que “isto é um problema político” e não jurídico. Tem tanta razão que nem deve aperceber-se da falta de razão que tem.

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