“O que se passa nos barcos do Douro é um escândalo. Nunca vi nada igual”
Teve vontade de fugir no primeiro dia de trabalho. Mas aguentou quatro meses. Jornadas contínuas, sem folgas, espaços exíguos para dormir, refeições feitas de restos. B. Costa não dá a cara mas quer denunciar o que se passa no Douro: “Para que outros não passem pelo que passei”
"Tudo começou com um telefonema. A minha ex-namorada estava a trabalhar num barco no Douro e tinha ficado bastante surpreendida porque tinham prometido 1100 euros líquidos por mês, com 70 horas semanais e duas folgas por semana. Para o cenário que temos em Portugal aquilo era um balúrdio. Valia a pena tentar. Fui a uma primeira entrevista com uma empresa de recrutamento. Apresentaram-se como “uma das melhores companhias de cruzeiros do mundo”. Iam investir no Douro e queriam profissionais com experiência. Prometiam alojamento, três refeições por dia, salário e subsídio de embarque. Parecia-me bem. Aceitei ir a uma segunda entrevista.
Num dos barcos da empresa, apresentou-se o director e o responsável pelas comidas e bebidas. Falaram da história da empresa, prometeram mundos e fundos. Tinham uma apresentação Power Point que parecia ser feita por um director de marketing. Vendiam a empresa de forma impressionante e fiquei muito interessado.
As minhas dúvidas começaram quando me convidaram para o almoço. O buffet do restaurante estava mal composto, deixava muito a desejar. Assustei-me um pouco. Mas esperei pela entrevista propriamente dita. Promessas: um ambiente fantástico, um ordenado nem tanto mas a promessa de gorjetas divididas justamente. Quando me falaram num dia livre de duas em duas semanas e em duas semanas de “férias” pagas pela empresa de dois em dois meses fiquei convencido. As gorjetas, diziam, andariam entre os 200 e os 250 euros semanais.
Disse que sim. Viajei de Lisboa para o Porto e de lá para o Pinhão. Quando cheguei, a minha ex-namorada já tinha desistido. Aguentou uma semana. Entrei no barco um pouco antes das seis da tarde. Pediram-me para fazer a barba e começar imediatamente. Nem sequer me deram tempo de ler e assinar o contrato. Tinha de começar logo. Nem uniforme tinha — nem eles o facultavam. A sorte foi que tinha vestido calças pretas, sapatos pretos e camisa.
Comecei às 18h30 e terminei à 1h30 da manhã. Era quase sempre assim. Despertar pelas 6h30 da manhã para tratar dos pequenos-almoços. Depois, pelas 11h45, estava terminado. Às 12h30 já estávamos a começar os almoços, até às 15h/16h. Alguns de nós iam directos para o serviço de bar, fazer cocktails. A seguir, era preciso abrir o restaurante. Para acabar pela meia-noite e meia no mínimo.
O contrato só assinei no segundo dia. Sazonal. Vinham explícitas as 40 horas semanais mas havia uma alínea no fim, que eu não reparei na altura, que obrigava o trabalhador a fazer mais horas caso fosse necessário. Com a indicação de que esse período seria pago posteriormente. Obviamente isso nunca aconteceu.
Ao primeiro dia tive vontade vir embora. Foi assustador. Os quartos eram minúsculos, dois beliches colados um ao outro, uma casa de banho pequeníssima. Condições terríveis. O ar-condicionado não funcionava, era um calor enorme. Não havia comida para os trabalhadores. Ou, quando havia, era horrível e não tínhamos tempo para nos sentar a comer. Comíamos os restos dos buffets dos clientes. Havia pessoas que iam às compras quando o barco atracava. Compravam atum, bolachas, pão.
O salário que prometeram era mentira. Falaram em 700 euros líquidos. Acenaram com as gorjetas. Mas nunca eram divididas à nossa frente, por isso não fazíamos a mais pequena ideia qual era o valor real. Tudo se fazia em secretismo. Aos clientes era dito para não deixarem gorjetas aos empregados de mesa porque já recebíamos um balúrdio. Era-lhes dito para deixarem num envelope no quarto. Como está bom de ver, dessa forma iam ter aos managers. Havia clientes que vinham ter comigo agradecer o meu trabalho, diziam-me que queriam dar-me uma gorjeta e que, como lhes tinham pedido, tinham deixado num envelope no quarto. Comecei a dizer-lhes para não darem. Não fazia qualquer sentido.
Vida de cruzeiro não tem folgas. Foi-nos prometido um dia de duas em duas semanas. Nos quatro meses em que lá estive nunca aconteceu. Recebia 700 euros por mês brutos. Mais uns 60 euros por semana de gorjetas — mas isso não pode entrar nas contas.
Tudo o que era limpeza de restaurantes tínhamos de ser nós a fazer. Todos as segundas ou terças, quando os turistas saíam de manhã, tínhamos de voltar a montar as mesas do restaurante de imediato. De seguida ajudávamos o housekeeper a mudar as roupas de cama, a aspirar os quartos, a encher os mini-bar. Descansávamos uma hora no máximo e já estávamos a levar com 200 clientes. Começava tudo de novo. Um ciclo.
Ali, uma pessoa ali vai rapidamente à loucura. Mesmo. No barco onde estive no Douro os portugueses começaram a desistir muito rapidamente. Quando cheguei havia vários e, quando saí, só quatro meses depois, estava eu e mais dois. Eram quase só trabalhadores estrangeiros. Aquilo não era vida. Foi uma experiência muito má. Na altura não tinha hipótese de ficar sem emprego e fui ficando. Mas foram meses terríveis. Já trabalhei noutros cruzeiros fora de Portugal. O que se passa nos barcos do Douro é um escândalo. Nunca vi nada igual. Lá fora não é bom, mas comparando com o que cá se passa é um luxo. Falo disto para que outros não passem pelo que passei.”
Depoimento construído a partir de uma entrevista