Há muito, muito tempo, era Lisboa outra cidade...
Um programa de habitação para jovens, a redução do número de carros na cidade, o desenvolvimento dos transportes, o fim das barracas. Alguns dos temas fortes das autárquicas de 1997 voltaram para nos atormentar. Ou melhor: nunca desapareceram.
Primeiro, um pequeno exercício. “O grande desafio do próximo presidente da Câmara Municipal de Lisboa terá de ser, inevitavelmente, o de travar a verdadeira sangria que a população da cidade tem sofrido nos últimos anos”. Quando é que esta frase foi escrita? E esta: “Um programa de habitações económicas, para que a classe média e os jovens não sejam ‘empurrados a um ritmo alucinante para fora de Lisboa’…”?
Eis finalmente chegado o momento de discutir projectos para Lisboa e decidir quem deve governar a capital nos próximos quatro anos. O PS, partido que manda na câmara, apresenta a eleições um homem que se tornou presidente a meio do mandato, depois de o anterior ter ido para um cargo mais destacado. O PSD, que há dois anos saiu traumatizado de umas legislativas, candidata um outsider às lides autárquicas, confiante de que assim poderá derrotar a hegemonia socialista. E, na esquerda mais à esquerda, surge um candidato praticamente desconhecido que tenta romper com a tradição bipartidária. Na agenda da campanha estarão certamente os temas que mais preocupam os lisboetas: habitação, transportes, cheias. Estas autárquicas de 1997 prometem animação.
Pois, 1997. Pensou que estávamos a falar de quais?
Já passaram vinte anos (sim…), mas 2017 e 1997 têm mais em comum do que à primeira vista parece. Nas autárquicas lisboetas, as coincidências começam logo pelo que se disse acima. A forma como Fernando Medina, candidato socialista, se tornou presidente de câmara a meio do mandato, depois de António Costa ter saído para concorrer às legislativas, é sobejamente conhecida. Mas ainda se lembra de que foi isso que aconteceu com João Soares, quase sem tirar nem pôr, há vinte anos? Com uma diferença: Jorge Sampaio, o anterior autarca, foi para Belém, e não para São Bento. O outsider social-democrata deste ano é Teresa Leal Coelho, em 1997 era Ferreira do Amaral. A cara mais desconhecida é Ricardo Robles, 39 anos, candidato do Bloco de Esquerda – faz lembrar o Francisco Louçã de 41 anos que, há vinte, era a aposta do PSR.
Há diferenças, claro. Nas autárquicas de 1997 o PS estava aliado ao PCP, aos Verdes e à UDP, naquilo a que se chamou coligação Mais Lisboa. O PSD não apresentava Ferreira do Amaral sozinho, tinha o apoio do CDS numa candidatura com trocadilho fácil: LisBoa Cidade. Agora, PCP e Os Verdes levam um candidato próprio a votos – João Ferreira, já repetente. E o tempo de acordos entre PSD e CDS também parece distante: Assunção Cristas, líder centrista, tenta destronar os socialistas sozinha.
O tempo que passou...
Por esta altura já deve ter adivinhado: as citações que iniciam este texto foram escritas por jornalistas do PÚBLICO há vinte anos. Em 1997, os eleitores de Lisboa estavam especialmente preocupados com os problemas da habitação, dos transportes, do trânsito, das cheias. Certas coisas, como as dez mil barracas que então havia na cidade, desapareceram. Mas outras questões parecem copiadas a papel químico.
Vivia-se um clima de optimismo. Em Dezembro, quando os portugueses foram às urnas, faltavam poucos meses para a abertura da Expo 98, o evento internacional mais relevante que Lisboa receberia nessa década. Em Setembro tinha sido inaugurado o centro comercial Colombo, o maior da Península Ibérica, descrito pela RTP como “uma obra gigantesca”, que teve direito a inauguração pelo Presidente da República – apesar de, no dia da abertura, as obras não estarem ainda terminadas. Em Outubro, a venda de acções da Portugal Telecom a privados fora um sucesso. E, nas páginas do PÚBLICO, um anúncio publicitário prometia “Rica Vida!” a quem quisesse comprar casa na Estrada da Luz: “Sabe o que custa ter vida de rico em Lisboa?”
Enquanto uma parte da cidade se desenvolvia luxuosamente, recebia uma nova linha de metro e engalanava-se para receber condignamente os muitos visitantes, outra cidade gritava por mais atenção. A 18 de Outubro, faltavam menos de dois meses para as eleições, choveu tanto que a Avenida 24 de Julho ficou transformada num enorme lago. Logo no dia seguinte, três pessoas morreram durante um incêndio no túnel do metro. Em Novembro continuou a chuva forte, repetiram-se as cheias. Escrevia-se então na rubrica Público & Notório do PÚBLICO: “Porque será que, de cada vez que se prevê uma chuvada, a Câmara Municipal de Lisboa fica à beira de um ataque de nervos?”
Na dicotomia entre cidade rica/cidade pobre, havia ainda um problema bicudo: milhares de famílias viviam em barracas. A situação era tão escandalosa, ainda para mais na véspera de receber o mundo em Lisboa, que se tornou tema incontornável para todos os candidatos. No início da campanha, João Soares prometeu, como “compromisso de honra”, que acabaria com as barracas até 2001. Ferreira do Amaral duvidava da bondade daquelas palavras e, na apresentação do seu programa eleitoral, proclamou uma frase que ainda hoje faz escola: “Ninguém pode acreditar que, quem em oito anos deixa a câmara como está, tenha agora coragem de se apresentar ao eleitorado dizendo que irá fazer em quatro anos o que nunca fez em oito.”
Habitação, habitação, habitação. Então como agora, praticamente não se falava noutra coisa. A 29 de Novembro, o PÚBLICO traçava o diagnóstico. “Nos últimos 16 anos, Lisboa perdeu perto de 250 mil habitantes, o que dá uma média assustadora de 15 mil pessoas por ano a trocarem a capital pelos concelhos periféricos.” Um dos motivos apontados para a sangria era a inexistência de casas baratas. “A classe alta e média-alta tem muito por onde escolher. Para as classes médias é que nada tem sido construído e a maior parte das urbanizações dentro da cidade estão longe do seu poder económico.”
Trânsito, trânsito, trânsito. Então como agora, praticamente não se falava noutra coisa. A desertificação da cidade tinha um impacto óbvio e imediato. “As pessoas saem, mas os empregos continuam na capital. E todos os dias entram em Lisboa 400 mil viaturas”, continuava o mesmo artigo. Havia, por isso, “constantes engarrafamentos no interior e nos acessos à cidade e nos passeios teimosamente invadidos por automóveis”. Todos os opositores a João Soares eram “unânimes na crítica à falta de parques dissuasores”, enquanto o autarca lembrava que “retirou os carros da Praça do Comércio” e que isso devia ser lido como “um sinal de que o PS e o PCP querem menos automóveis dentro de Lisboa e melhores transportes públicos”.
... não volta, não
“Habitações baratas para jovens”. Era este o título da notícia do PÚBLICO que, a 9 de Novembro, dava a conhecer as ideias de Ferreira do Amaral para Lisboa. O candidato PSD/CDS dizia que os jovens da classe média estavam a ser “empurrados a um ritmo alucinante para fora” da cidade e propunha a “venda de terrenos camarários – a um preço tabelado inferior a 70% do seu real valor – ao promotor imobiliário que garantisse vender a casa ao mais baixo custo”. Declarava o ex-ministro de Cavaco: “Podemos resolver os problemas de trânsito, de segurança, de espaços verdes, podemos dar a volta a tudo, mas se o fizermos com o abandono dos jovens e da classe média, estaremos a promover um sítio e não uma cidade.”
Do lado socialista-comunista, a aposta era na continuidade das políticas. “Não queremos que Lisboa perca a sua população jovem”, afirmava Soares, apontando para a importância da Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL) neste capítulo. A EPUL, que tinha programas destinados especificamente a jovens, estava naquele momento a construir 1200 casas para este segmento da população e Soares queria reforçar o investimento. (A EPUL acabou por ser extinta em 2014, por decisão de António Costa.)
Já Francisco Louçã prometia apostar mais na reabilitação de 20 mil casas devolutas do que em construção nova, além de propor um imposto específico para proprietários que deixassem as suas casas degradarem-se propositadamente.
Eram do candidato do PSR as propostas mais fora do comum – e que hoje deixaram a esquerda e vieram para o centro. Louçã propunha “a municipalização do metro e a extensão deste meio de transporte nos sentidos Amoreiras – Alcântara, Amadora – Falagueira e Brandoa”, lia-se. A Carris também era para municipalizar e devia investir “em duas novas linhas de eléctricos rápidos: Algés – Carnaxide – Benfica e Pontinha – Odivelas – Loures.” Para João Soares ficavam muitas críticas. O “presidente-substituto”, assim lhe chamava Louçã, “decidiu considerar que os lisboetas seriam tão pacóvios que o elegeriam por ficarem de olho cheio com as inaugurações em véspera do voto”.
No fim daquele chuvoso Novembro, Soares almoçou com taxistas numa churrasqueira. Os “oitenta homens do volante” queixaram-se, pois claro, dos muitos buracos nas estradas, carinhosamente apelidados como “crateras”. O candidato socialista deu-lhes razão, falou das obras que estavam em curso e no fim mostrou-se confiante. “Nós vamos ganhar as eleições porque amamos a cidade como os nossos adversários não amam!”, disse aos taxistas. Seria só uma questão de amor? “A política é pouco frequentada por pessoas intelectualmente sérias e respeitadas”, diria o ex-líder do CDS, Paulo Portas, numa acção de campanha de Ferreira do Amaral.
Amor era coisa que, certamente, não existia entre os dois principais candidatos. Nunca se esclareceu se o disse ou não, mas ficou atribuída a Soares uma frase que marcou a campanha. “É um queque de Cascais armado ao pingarelho”, terá dito o autarca sobre Ferreira do Amaral. Mas, queixava-se o socialista, o social-democrata também não era brando para com ele, fazendo-lhe “as mais descabeladas e deselegantes acusações”, além de lhe chamar “nomes de variadíssimos animais da fauna ornitológica de Lisboa e não só”. E rematava: “Eu acho que sou, passe a imodéstia, bastante mais elegante no tratamento com os meus adversários políticos.”
O fim da história é conhecido: João Soares foi eleito com 51,9% dos votos e ficou na câmara por mais quatro anos. Foi a única autarquia ganha por uma coligação entre PS e PCP, num ano em que o PSD, liderado por um irrequieto Marcelo Rebelo de Sousa, conseguiu restabelecer-se um pouco do trauma causado pelas legislativas de 1995 (ganhas pelo PS de Guterres com grande margem). João Soares teria continuado na Praça do Município por mais tempo, não fora Santana Lopes ter descido da Figueira da Foz para lhe tirar o cargo, com estrondo, em 2001.