Merkel ou a arte da indefinição
O Presidente americano é um susto para a Europa, mas pode ser um trunfo para a vitória de Merkel.
1. Percebe-se o desespero de Martin Schulz. O candidato do SPD a chanceler já aprendeu à sua própria custa que combater Angela Merkel é um desafio quase impossível. Entrou na corrida eleitoral alemã vindo directamente do Parlamento Europeu, a que presidiu nos últimos anos, com a imagem de um líder combativo e pró-europeu, capaz de entender melhor os dilemas e as dificuldades que outros países enfrentaram. É afável, simpático, comunicativo que chegue para ter feito uma entrada de leão na cena política alemã, pondo pela primeira vez em causa a liderança inabalável da chanceler. Há um ano, muitos analistas alemães chegaram a escrever-lhe o epitáfio. Estava esgotada. A sua política de portas abertas aos refugiados fora um “erro” do qual não recuperaria. A Europa ainda não saíra da sua crise profunda e Merkel não estava inocente. Era uma oportunidade para uma alternativa.
2. A ascensão de Schulz foi, como sabemos, sol de pouca dura. O líder do SPD não podia atacá-la na questão dos refugiados porque defende exactamente a mesma coisa. Acabou por perceber que tinha pela frente um muro inexpugnável. Merkel ocupa o centro político, deixando o SPD sem espaço. E fá-lo com uma habilidade extrema. Cede o que tem de ceder, parecendo que não está a ceder nada. Diz que é contra, mas aceita que haja uma maioria a favor. “Segue a mesma estratégia quer se trate dos debates para abolir o serviço militar obrigatório, o salário mínimo, os casamentos gay, o fim da energia nuclear, benefícios melhores para os pais”, escrevem Christian Odendahl e Sophia Besch do Center for European Reform. “Em vez de insistir em políticas conservadoras tradicionais deixando o centro vazio para o SPD ou os Verdes, ela consegue integrar muitas das suas políticas mais à esquerda numa narrativa cristã-conservadora.” Em matéria de política económica, tudo aquilo que Schulz pode fazer é exigir mais de investimento interno nas infra-estruturas ou a melhoria de alguns serviços sociais. A CDU responde que não há nada melhor do que contas equilibradas e que a segurança social é criar empregos. A taxa de desemprego alemã é das mais baixas da zona euro. Schulz tinha matéria para crítica: 23 por cento do emprego é de baixos salários. Não conseguiu fazer passar a mensagem. Tentou disparar em todas as direcções mas viu as intenções de voto no seu partido descer até aos valores que o SPD tem registado depois de Gerhard Schroeder: pouco mais do que 20 por cento. Chegou a ultrapassar os 35 por cento e a igualar em popularidade a sua principal adversária. Com a crise em fase de algum alívio, não quer ir longe de mais na política europeia, porque ainda não conseguiu convencer os alemães de que a estratégia de Merkel para a crise do euro não foi tão bem sucedida como eles pensam e que, no longo prazo, é a Alemanha que mais tem a perder se deixar que a Europa caia.
3. Entretanto, o clima político europeu também mudou. A economia iniciou o caminho da retoma. A vaga do populismo e do nacionalismo começou recuar com a vitória de Emmanuel Macron ou com os resultados das eleições na Holanda. O Presidente francês foi saudado na Alemanha como o líder de que a França precisa e com quem a Alemanha sonha. Muitos analistas alemães, à direita e à esquerda, chegaram a defender que, desta vez, Berlim teria de fazer a sua parte do caminho em direcção às propostas francesas para a reforma da zona euro, sob pena de correr o risco de ver Le Pen de novo às portas do Eliseu daqui a cinco anos. O que fez Merkel? O mesmo de sempre. Deixou cair algumas cedências, mas apenas as necessárias para não dinamitar a ponte entre Paris e Berlim. Ninguém sabe o que pensa realmente, ou se será mais ousada depois de ganhar as eleições. A chanceler aprendeu muito nos últimos anos e soube mudar de políticas quando foi preciso. Em 2010, em plena crise grega, foi a última a perceber que, se deixasse a Grécia falir, as consequências para o euro seriam catastróficas. Quatro anos depois, sentou-se sozinha com Alexis Tsipras numa sala e negociou com ele a melhor forma de manter a Grécia no euro. Ambos cumpriram o que prometeram um ao outro. Até agora, a sua forma de agir foi quase sempre a mesma: perante mais uma crise, fazer o mínimo possível para evitá-la. No seu quarto mandato, certamente o último, teria de ir muito mais longe. A Europa precisa de um entendimento estratégico que defina o quadro do seu futuro num mundo cada vez mais adverso à ordem europeia e à ordem liberal. Tem em Macron um líder à altura de partilhar com ela a liderança europeia. Aprendeu que liderar a Europa vai muito além do que liderar a sua economia. Desprezou a França, quando Hollande interveio no Mali. Hoje, dá apoio no Mediterrâneo às missões francesas e americanas contra o Daesh. Mantém a promessa de aumentar o orçamento da defesa dos actuais 1,2 por cento para os dois por cento fixados na cimeira da NATO de 2014. “ É uma discussão que já vem de trás e que não tem nada a ver com Trump”. Já percebeu que o desinteresse de Trump pela Aliança obriga os europeus a fazerem muito mais por ela.
4. Schulz, porventura em desespero de causa, resolveu assestar baterias no Presidente americano. Os alemães detestam-no. Mais ainda do que a Putin ou Erdogan. As bases do SPD ainda conservam o seu velho tique antiamericano. O candidato do SPD foi ao ponto de defender a saída das armas nucleares americanas que ainda estão em território alemão. Defende uma reaproximação à Rússia. Render-lhe-á alguma coisa? Joschka Fischer, o líder histórico dos Verdes que foi chefe da diplomacia durante os governos de Schroeder, já veio avisar que é preciso ter cuidado com as tiradas antiamericanas que podem ter consequências perigosas. Neste campo, curiosamente Merkel não hesita. Na célebre entrevista que deu recentemente a vários jornais alemães não perde uma oportunidade para dizer que uma coisa é Trump, outra os Estados Unidos. “Para mim, [a relação com os EUA] é uma questão dentro de uma comunidade. Temos muita coisa em comum com os EUA e acredito que isso vai também reflectir-se na NATO”. Quando Obama veio a Berlim entregar-lhe o título de líder do mundo livre, começou por dizer que era uma ideia “grotesca”. Hoje, graças a Trump, mostra-se um pouco mais aberta a uma ideia que sabe impossível mas que agrada aos alemães. O Presidente americano é um susto para a Europa, mas pode ser um trunfo para a sua vitória, escrevem alguns analistas. Em Munique, na Festa da Cerveja, chegada das cimeiras da NATO e do G7, a chanceler deixou cair duas frases que geraram intenso debate. Disse que a Europa “tinha de tomar o seu destino nas próprias mãos”, acrescentando que “já não poderia depender, dos outros, pelo menos parcialmente, para garantir a sua segurança”. Mais uma coisa que aprendeu: há novos riscos à segurança europeia que é preciso considerar e que vão desde a Rússia até ao Médio Oriente. Liderou a reacção à Rússia depois da anexação da Crimeia. A forma como trata os “homens fortes” com que tem de lidar, de Putin a Erdogan, deixa-os perplexos. O Presidente turco acreditou que poderia chantageá-la com o negócio dos refugiados, que ficariam no seu país à espera do direito de asilo. Já percebeu que se enganou. É coerente. Schulz deixou-se enredar em várias frentes ao mesmo tempo.
Entretanto, os europeus esperam para ver o que realmente tenciona fazer depois do dia 24. E rezam, na sua maioria, para que o SPD consiga um resultado que, pelo menos, abra as portas a uma nova “grande coligação” politicamente mais equilibrada e, de preferência, sem Wolfgang Schäuble.