A vida de Alice mudou no Verão de 1968
A jornalista e escritora Alice Vieira descobriu a tranquilidade da Costa Nova no ano em que assumiu um amor que, à época, era um escândalo. O mar continuou a fazer parte da sua vida.
Foi o Verão que mudou a vida de Alice Vieira e o ano não podia ser mais simbólico: 1968. Em Maio, a jornalista do Diário Popular estava em Paris onde tudo se passava, as greves dos estudantes, as ocupações de fábricas por parte dos trabalhadores, e a vida de Alice era um turbilhão que culminou com o regresso a Portugal em Junho e na sua ida para a Costa Nova.
“Vivíamos o Maio de 68 em Paris e, de repente, largo tudo para voltar à pátria… Tinha-me zangado com as pessoas… Amores!”, resume, sentada na sala da sua casa de Lisboa, rodeada de livros, fotografias, jogos e pequenas colecções como as dos faróis ou dos presépios. Em 1968 não era fácil estar apaixonada por um homem mais velho 23 anos e casado. “Nem a minha família, nem a dele nos falavam.” Por isso, esteve em França três anos – “arranjei maneira de ser correspondente” do jornal. “Quando mandávamos peças [notícias], não passavam na censura, não passava nada…”
Antes ainda da chegada à Costa Nova era preciso chegar a Lisboa e o coração de Alice estava tomado pelo desassossego, sem saber se o namorado a esperaria no aeroporto. "Não havia telemóveis e vivia-se uma greve geral." A TAP decidiu pegar nos passageiros de Paris, metê-los num autocarro e viajar até Bruxelas onde apanhariam o avião para Lisboa. Alice e Mário Castrim, o jornalista e crítico de televisão, podiam ter-se desencontrado e esse era o maior medo da jovem de 25 anos, que o partilhou, durante o voo, com uma perfeita desconhecida. “Estava desesperada e não sabia se ele estaria à minha espera. A minha cara era tão estranha que a senhora que estava ao meu lado perguntou-me o que se passava.” Depois de contar a sua história, a companheira de viagem, que era mulher do embaixador português em Paris, fez a jornalista prometer-lhe que se o namorado não estivesse à sua espera “ia com ela para casa”. Afinal, Alice, “menina de boas famílias lisboetas”, como se autodefine, não falava com a família e não podia regressar a sua casa. E se, acrescentou então Fedora Mathias, mãe do ex-embaixador Marcello Duarte Mathias, alguma coisa não correr bem, “telefone-me”.
Mas as coisas não podiam ter corrido melhor. Mário estava à espera de Alice, agarrou-a e levou-a para a Costa Nova. “Saltei de uma revolução com carros a arder para uma tranquilidade. Foi o Verão da minha vida porque eu vinha sem saber o que ia acontecer, estava muito apaixonada, mas uma coisa é estar apaixonada e outra é viver com uma pessoa. E foi extraordinário. Modificou a minha vida em tudo. Eu preciso de mar, de água... Mas também gostei muito do Maio de 68!”, acrescenta, dando uma enorme gargalhada.
As fotografias desses tempos tranquilos são poucas. Alice não gostava de ser fotografada. “Mas adorava tirar [fotografias], ainda hoje!”, conta enquanto sorri para o repórter fotográfico do PÚBLICO, obedecendo a todos os pedidos que ele vai fazendo. Há uma imagem que a autora deposita em cima da mesa, dela sozinha. Mas há outras, a do marido naquele mesmo ano ou dela com os filhos na Praia do Sul, na Ericeira.
Jogar matraquilhos e beber ginginha
Mário Castrim queria apresentar a namorada aos amigos. “Eram extraordinários.” Assim que chegaram, o médico e escritor Mário Sacramento preparava-se para viajar, virou-se para Alice e perguntou-lhe: “sabe guiar?” Perante a resposta positiva, deu-lhe as chaves do seu carro e rumou a Paris, onde ia para um congresso. “E nós andamos pelas praias todas. A Ria [de Aveiro] estava muito assoreada, era lama e água pelo meio. Foram os meses de Junho e Julho e foram muito importantes para conhecer outro tipo de praia e de Verão”, continua a escritora de Rosa, minha irmã Rosa ou de Viagem à roda do meu nome, cuja acção se passa na Ria de Aveiro. “Fiquei sempre ligada à Costa Nova.”
Em criança, Alice e os irmãos iam para o Guincho, em Cascais. Antes de saírem de casa, os tios ligavam para uma tasca na praia e perguntavam como estava o tempo. “Mesmo que estivesse mau, nós íamos na mesma! Às 11h vinha o banheiro, o senhor António, púnhamos os dedos no nariz e ele atirava-nos para a água. Foi assim que aprendemos a nadar!”, ri. Mais tarde, a tia decidiu que os banhos seriam na Ericeira, uma visão estratégica de quem queria casar a menina com algum oficial que estivesse no quartel, em Mafra. “Se eles fossem aos bailes na Ericeira, podia ser que arranjasse um namorado.”
As ondas não são menos altas nem frias na Costa Nova, reconhece Alice, mas era uma maneira diferente de fazer praia que no Guincho ou na Ericeira. “Tem um mar mau, mas do outro lado tem a ria. Apanhávamos um barquito e íamos para uma tasca, A Bruxa, jogar matraquilhos e beber ginginha”, conta. Foi lá que a escritora se habituou a ir à água às 8h30 – “até os ossos rangiam!”. O hábito perdura até aos dias de hoje. “Gosto das manhãs e do seu sol tímido.” Mas também gosta “muito das esplanadas”. Aliás, fazer praia significa estar na esplanada.
Na família falar “da Costa”, não é fazer referência à Costa Caparica, como para o comum dos lisboetas, mas da Costa Nova. E depois dos filhos nascerem o casal continuou a rumar a Norte. “A família do meu marido tinha lá um palheiro onde ficávamos.” E ir para a Costa requeria uma logística que incluía ficar uma noite pelo caminho, em Albergaria. “O meu marido gostava muito de ir para lá, onde tinha os seus amigos. Foi sempre a nossa praia enquanto eles [os filhos] eram pequenos. Depois cresceram.”
Pouco a pouco, deixaram de fazer o caminho que separa Lisboa da Ria de Aveiro e iam ficando mais por perto, por Cascais, onde a família tem casa. “Dava-nos mais jeito”, justifica.
Depois disso, Alice regressou uma e outra vez à Costa Nova. Telefonava a alguém e perguntava: “O comandante Tadeu? Ah, já morreu… E o fulano de tal? Também…” Os amigos – mais velhos, tal como Mário Castrim, que era de Ílhavo – foram desaparecendo. Mas gosta sempre de lá voltar, garante, recordando que a identidade da Costa Nova também contempla a pesca do bacalhau – “o meu sogro era comandante de um arrastão”, informa – e a agricultura. Alice recorda que há uma cidade portuária no Norte da Alemanha, Cuxhaven, que é geminada com Ílhavo e que quando lá esteve, a convite das escolas para apresentar os seus livros, servia-se bacalhau e vendiam-se conservas, como cá. "Cheirava a Portugal."
Findado o Verão de 1968, o casal regressou a Lisboa para trabalhar – ela no Diário Popular, ele no Diário de Lisboa –, mas não para morar. Os ânimos ainda não estavam serenados, por isso, o casal foi viver para a Ericeira, onde raramente ia à praia. “Fazia pouco sentido fazer ali férias.” Não havia autoestrada e o casal levava "uma hora e três quartos" a chegar a Lisboa, hoje é pouco mais de meia-hora de viagem.
Anos depois, mudaram-se para a capital, mas a Ericeira continua a fazer parte das paragens da escritora – num dos seus últimos livros, Só duas coisas que, entre tantas, me afligiram - pequenas memórias (Casa das Letras), escreve sobre esta vila piscatória e nas últimas autárquicas concorreu como independente à assembleia municipal de Mafra, nas listas do PS –, que enquanto jornalista continua a colaborar com o Jornal de Mafra e a revista Audácia, dos missionários combonianos.
Por lá, logo pela manhã faz uma caminhada à beira-mar, depois vai para as esplanadas, falar com as pessoas, e à noite vai à discoteca Ouriço, que celebra 67 anos – “quando eu era nova, tinha má fama, agora está tão bonita”, elogia –, ou ao bar Neptuno. Os amigos riem-se quando vêem as fotos que partilha nas redes sociais e dizem-lhe: “Estás sempre de copo na mão!” Mas é no Outono que a escritora gosta da praia, “com poucos turistas e menos pressas. Está tudo mais calmo.”