Esta temporada não vai só no Teatro São Carlos

A programação do teatro nacional de ópera para 2017/2018 que esta sexta-feira é apresentada traz algumas surpresas. O director artístico Patrick Dickie não acredita que o São Carlos tenha um só público. Para ele, é importante que tenha vários. E para isso também é preciso sair de casa.

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Patrick Dickie, o director artístico do São Carlos ENRIC VIVES-RUBIO

O Teatro Nacional de São Carlos apresenta esta sexta-feira a sua temporada 2017/2018, que se inicia em Outubro com o Turandot, de Puccini, e termina em Junho do próximo ano com outra ópera emblemática, La Traviata, de Verdi. Mas entre estes dois momentos, muito vai acontecer, explicou o director artístico da casa numa conversa com o PÚBLICO.

Para Patrick Dickie, uma temporada não deve ser concebida como um programa estanque. E esta terá “sete títulos diferentes, escolhas eclécticas que se apoiam mutuamente”, diz. “O programa tem de ter esta diversidade para o sentir vivo, para a ópera estar viva, caso contrário o repertório fossiliza e acaba morto”, argumenta. Para o director artístico, é também uma busca permanente de novos públicos que está em causa: “O público tem de ser desafiado, e não é apenas uma questão de repertório. É preciso propor novas produções e novas abordagens, projectos com um ponto de vista. Só assim podemos chegar a pessoas diferentes.” O que também implica ir ao encontro delas: Patrick Dickie está particularmente feliz com a possibilidade de o São Carlos "sair de casa", logo na abertura da temporada, com a ópera Turandot, que se apresentará nos Coliseus de Lisboa e do Porto: "Sabia que tinha havido experiências semelhantes noutras alturas, e não compreendia porque não podíamos fazê-lo novamente.”

Apesar dos equilíbrios que foi preciso procurar para a próxima temporada, Patrick Dickie prefere pôr o acento nos projectos, até porque "há um limite na capacidade de produção": "Projectos que criam públicos específicos. E encontrar o público de cada vez, em vez de pensar que há apenas um género de público.”

Nesse sentido, o director artístico do São Carlos, em funções desde o ano passado (depois de ter sido nomeado “consultor artístico” há dois anos), considera que se tem feito um percurso com sentido nos últimos anos. E dá o exemplo da temporada passada para explicar como concebe a direcção do teatro: “Julgo que fomos bem sucedidos, com óperas como Carmen ou Anna Bolena, mas também propondo coisas diferentes, como obras de Zemlinsky, Britten ou Stravinsky, mais arriscadas.” E acrescenta, com algum orgulho: “Nem todas as casas de ópera conseguem fazê-lo!” Na sua visão “por projectos”, Patrick Dickie sublinha a necessidade de “energia e entusiasmo”. Mas também de integridade: “Acredito muito nesta temporada. Estamos sempre a correr riscos, mas são calculados. O que importa é a integridade de projectos que provoquem a reacção do público.”

Novas relações

Para Dickie, é crucial que o São Carlos não seja "apenas" um edifício em Lisboa: a capacidade do teatro nacional para actuar fora de portas e estabelecer novas colaborações é uma das dimensões que mais o entusiasma na temporada que se avizinha. "Fizemos isso com o Centro Cultural de Belém [CCB]. Estou muito contente que possamos ir ao Porto fazer a Turandot.” A última ópera de Puccini, estreada em 1926 no Teatro alla Scala de Milão, com a direcção de Arturo Toscanini, regressará a Portugal em espectáculos nos Coliseus, reabilitando a ideia de uma ópera popular, noutros locais que não só o histórico teatro de ópera de Lisboa.

Não será a única visita ao Porto: “Também vamos fazer The Rape of Lucretia aqui [no São Carlos] e no Porto, no Teatro Nacional de São João. É o começo de uma nova relação." Paralelamente, há outras que se retomam: "A Cornucópia acabou, mas Luis Miguel Cintra [que assinará a encenação] não se reformou. A ópera será dirigida pelo João Paulo Santos. Vai haver tempo para uma preparação profunda, o que é muito importante”, diz o director inglês com um sorriso nos lábios. A importância de criar condições de trabalho que possam aprofundar relações é para ele fundamental: “Não estou vinculado ideologicamente a nenhuma escola de produção, mas estou comprometido, sim, com a importância do ensaio conjunto e do encontro entre maestros e encenadores. A força da casa é a sua capacidade de explorar uma obra durante um período de tempo, e as escolhas que fazemos são informadas por considerações dramatúrgicas.” A esse nível, o caso da ópera The Rape of Lucretia, de Benjamin Britten, será especialmente relevante nesta temporada. Uma ópera de câmara (como lhe chamou o compositor) criada para o primeiro Glyndebourne Festival, de 1946, que voltou recentemente a ser feita em Inglaterra com enorme sucesso. Luis Miguel Cintra e Cristina Reis darão nova vida em cena a este Britten, depois do acontecimento que foi Peter Grimes na temporada passada.

Mais do que um público

Será um São Carlos a trabalhar para vários públicos, o que teremos em 2017/2018: “Mesmo as óperas famosas, há sempre gente que não as viu – achamos que toda a gente viu, mas não é verdade”, diz-nos o director artístico. Claro que não podem faltar óperas “de repertório”, óperas que historicamente se têm mantido com mais regularidade nos teatros de ópera mundiais. “Vamos fazer La Traviata, 60 anos depois da Traviata de Maria Callas e Alfredo Kraus em Lisboa, em Março de 1958”, diz Patrick Dickie, lembrando uma récita (mítica) que ficou para a história graças a uma gravação não autorizada, e mais tarde lançada comercialmente. Mas esta Traviata terá uma nova perspectiva, na encenação de Pedro Ribeiro com cenografia de António Lagarto. E terá também Ekaterina Bakanova, soprano russa que causou sensação em 2015 numa Traviata no Royal Opera House, em Londres, quando teve de substituir uma colega sua à última da hora e fez uma actuação brilhante, segundo a imprensa britânica.

Mas isso será apenas a fechar a temporada São Carlos. Antes disso, haverá ocasião para outras produções. Em Dezembro, a pensar nas férias de Natal e com a intenção de chamar ao teatro de ópera público de todas as idades, estreia-se a fantaisie lyrique de Maurice Ravel L'enfant et les sortilèges, uma peça bem conhecida noutras paragens mas pouco tocada em Portugal. Aqui, numa produção da Ópera de Lyon com direcção musical de Joana Carneiro, cruzará animação (vídeo) e acção “viva”. Depois disso, em Fevereiro, pode haver uma surpresa, na nova produção de Elektra, de Richard Strauss, com encenação de Nicola Raab (responsável, recentemente, por A Flowering Tree, no CCB, e por Der Zwerg no São Carlos). No CCB, esta Elektra será encenada “quase como uma peça de Beckett, pois é uma ópera sobre uma espera”, explica-nos o director artístico. Uma encenação “minimalista”, em provocante contraste com a grandiosidade orquestral e os excessos vocais da partitura. O papel principal é para uma grande soprano da actualidade, particularmente neste tipo de repertório (fez WozzeckO Castelo do Barba Azul e move-se muito bem em obras próximas do expressionismo): Nadja Michael.

Amar a música e os cantores

Depois de Elektra, em Março, haverá Mozart. Mas um Mozart “sério”, com a apresentação da sua primeira grande ópera da maturidade, Idomeneo. Novamente com Joana Carneiro como maestrina, e com um elenco que promete: o tenor Richard Croft, a mezzo-soprano Coitlin Hulcup e a soprano Ana Quintans. E uma encenação nova do australiano Yaron Lifschitz, que, segundo Patrick Dickie, porá em cena “um teatro físico e de grande estilização”. Sempre com a ideia de um projecto com unidade, integridade e características próprias. Antes da Traviata final da temporada, haverá uma produção italiana (Arena di Verona e Teatro La Fenice) de I capuleti e i montecchi (1830), uma bela ópera de Vicenzo Bellini, com participação de alguns cantores portugueses.

Na temporada sinfónica, para além da abertura com a 9ª Sinfonia de Beethoven, há alguns concertos que merecem destaque, como a 7ª Sinfonia de Bruckner (no Theatro Circo de Braga, em Outubro), a de Mahler (no CCB, em Novembro), um Stabat Mater de Rossini (novamente no CCB, em Março) e, sobretudo, um War Requiem, de Benjamin Britten, com a direcção musical de Graham Jenkins, em Maio de 2018. Sobre a temporada sinfónica, traduzir o director artístico seria perder expressividade: “Joana is back, which is fantastic!”

No final, quando falamos de orçamentos, Patrick Dickie admite ser necessário “angariar mais fundos, sobretudo para poder fazer mais digressões”. Mas não desespera com a questão do dinheiro. Para ele, os projectos são possíveis desde que haja aquele entusiasmo, aquela energia, e aquela integridade: “Acredito no teatro musical”, diz convicto o director artístico do São Carlos. “As grandes colaborações na ópera são entre cantores, maestros e encenadores. A produção de uma ópera não é uma tese académica nem uma afirmação ideológica, é uma colaboração entre os mundos da música e do teatro, que deveria funcionar 'como se fosse a primeira vez'. Claro que para haver ópera é preciso haver um amor profundo da música e dos cantores”, sublinha. Para ver se há amores assim nesta temporada que começa, só indo à ópera. Que este ano não é só no São Carlos.

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