Brasil, a salvação era um conto de bruxas
Já se sabia que o afastamento de Dilma Rousseff da presidência do Brasil resultou de um golpe parlamentar que exprimia uma alteração na correlação de forças que dominam o país. Era mais um ajuste de contas do que uma punição política por supostas violações de deveres constitucionais. Era mais uma luta desenfreada entre os egos e interesses particulares de uma classe política devorista do que do impulso sincero de abrir uma nova página na crise. Deu no que deu. Num Governo decrépito, liderado por um presidente, Michel Temer, que colhe apenas o apoio de 5% dos eleitores, que se sustenta num programa reformista feito aos repelões, corroído pela permanente suspeita de corrupção, condenado a vegetar até que as eleições previstas para o Outono do próximo ano façam regressar o Brasil ao caminho da legitimidade democrática.
“O Brasil inventou a democracia sem povo”, escreveu há dias a escritora, jornalista e documentarista Eliane Brum na edição brasileira do El Pais. Os 54 milhões de eleitores que elegeram Dilma Rousseff fizeram-no com base num programa que nada tem a ver com a governação Temer, mas não é aí que está a raiz do problema – a própria Dilma há muito deixara de ser fiel aos compromissos com os eleitores. O problema maior é que o golpe parlamentar que esfacelou o princípio da soberania popular trocou uma presidente supostamente inepta por uma governação não só inepta como ainda mais maculada pela corrupção. Temer, ele próprio, foi salvo pela Câmara dos Deputados de uma denúncia de corrupção passiva não pelo facto de os indícios reunidos serem mais ténues do que as supostas provas de violações das regras orçamentais que afastaram Dilma; foi-o porque esse era o desfecho mais interessante para os parlamentares que o apoiam. Só mesmo um grande país e um povo extraordinário resistem a tanta malfeitoria.
Com a economia a patinar (0% de crescimento no segundo semestre), com o desemprego neste ano a afectar este ano mais 2.6 milhões de pessoas e a subir para 13.6%, com a dívida e o défice a derraparem para valores que obrigam o governo a lançar o maior programa de privatizações das últimas décadas no qual até a Amazónia serve para angariar receitas, o Brasil não parece ter ganho nada desde que Dilma foi afastada. Pelo contrário. Por muito que algumas reformas, como a da Previdência, façam sentido, o Brasil que invocou a probidade e a lei para desfazer uma presidência está hoje ainda mais aflito pela falta de probidade e pelo desrespeito pela lei. As sequelas são óbvias: o clima político continua tenso; o Brasil está dividido; os compromissos fundamentais em qualquer sociedade democrática são hoje mais difíceis de conseguir.
Os brasileiros deixaram de se manifestar nas ruas como em 2014 ou 2015, os tribunais ganharam espaço na política e na sociedade, o radicalismo cresce com o extremismo fascizante de Jair Bolsonaro, o homem que considera que a “ditadura deveria ter matado uns 30 mil, a começar por Fernando Henrique Cardoso” e que está em segundo lugar nas sondagens para as presidenciais, o PT permanece desorientado a lamber as feridas da sua própria incompetência e tolerância à corrupção, o PSDB, o outro grande sustentáculo do regime, divide-se entre o apoio e a oposição a Temer. Um ano depois da queda de Dilma, nada parece ter melhorado. A ferida de uma mudança suspeita de ter sido feita à revelia da vontade popular cavou um fosso entre o “nós” do PT e o “eles” das elites dominantes, que estão na base do poder do Governo, que vai exigir muito tempo para sarar.
Com o Governo a perder apoio para as grandes reformas, com os deputados interessados em discutir sinecuras, com o presidente a ser alvo de uma nova denúncia de obstrução à justiça e organização criminosa lá para meados do mês, a réstia de esperança que sobra é a da clarificação e relegitimação do regime com eleições em 2018. Mas nem aí abundam grandes expectativas. Lula, à frente nas sondagens, é passado. Ciro Gomes, ex-governador do Ceará e ex-ministro de Lula, é passado. O Governador paulista Geraldo Alkmin é passado – embora o prefeito de São Paulo, João Dória, seja uma alternativa. Marina Silva é uma eterna incógnita. Novo, novo, só mesmo Bolsonaro. O seu perfil ditatorial e populista parece bem ajustado aos tempos tumultuosos e desesperançados, como os do Brasil de hoje. Mas, haja calma: o Brasil contemporâneo, apesar de todos os problemas, não é o mesmo de 1964, o ano do golpe militar que instituiu a ditadura infame até 1986.