E a montanha ainda não pariu um pacto para a justiça

Presidente pediu há um ano aos parceiros sociais que se entendessem sobre os caminhos que o sector deve seguir. Um ano depois nem o trabalho está pronto nem as expectativas são grandes. A redução de custas judiciais gera consenso, a delação premiada nem por isso.

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Marcelo Rebelo de Sousa há um ano, na abertura do ano judicial Rui Gaudencio/Publico

Um ano passado sobre o apelo do Presidente da República a um pacto na área da justiça, os parceiros ainda não chegaram a um acordo. Fá-lo-ão lá para Novembro, altura em que entregarão a Marcelo Rebelo de Sousa o fruto deste demorado parto. Mas as expectativas no sector são, no geral, pouco altas, e pautam-se pelo mesmo diapasão quer se fale com juízes, advogados ou procuradores: “Não temos capacidade para determinar alterações legislativas”.

Marcelo sabia-o, mas não deixou de o pedir mesmo assim, durante a cerimónia solene de abertura do ano judicial, a 1 de Setembro passado. Menos de uma semana depois havia de explicá-lo melhor numa conferência promovida, por sua sugestão, pela Associação Sindical de Juízes Portugueses: “Retomo o apelo para que os parceiros tudo façam para trabalharem no sentido de convergências, ainda que pontuais, ainda que sectoriais. Que abram caminho e que mobilizem os partidos e o Parlamento”. Ao mesmo, tempo mostrou-se ciente dos entraves. “Pode ser um caminho a trilhar de forma parcelar ao longo dos próximos anos, e não de um só fôlego. Pode ser que surjam questões prementes de meios ou recursos disponíveis, a suscitarem convergências (…). Não importa. O que importa é avançar. É fazer tudo para uma crescente credibilização da justiça”, defendeu.

A um ano de distância são palavras que surgem quase como proféticas. Com divergências em várias questões, os agentes do sector conseguiram entender-se em relação a matérias que implicam que o Estado gaste mais – ou que abdique de receita. É o caso das custas judiciais, debatidas num dos quatro grupos de trabalho formados para gizar o pacto e nos quais participam, além de juízes, procuradores e advogados, também representantes dos funcionários judiciais e dos solicitadores. Que as elevadas taxas cobradas pelos tribunais condicionam o acesso da classe média à justiça – os mais pobres têm isenção – ninguém duvida. A própria ministra, que não participa nas negociações do pacto - nem é suposto participar, pelo menos nesta fase -  já o assumiu. Mas foi também avisando que isso implica a procura, pelo Estado, de novas fontes de financiamento, até porque, se as custas não constituem uma parte assim tão importante de receitas próprias do Ministério da Justiça, o mesmo não sucede com o pagamento de honorários aos advogados oficiosos. Estas defesas custam uma média de 50 milhões de euros anuais, apesar de também estarem restringidas aos casos de manifesta insuficiência económica.

De resto, o Ministério da Justiça criou o seu próprio grupo de trabalho para estudar a questão do acesso ao direito, recorda o presidente do Sindicato de Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas, que considera a situação um tanto ou quanto esquizofrénica. A tutela espera poder apresentar as conclusões e medidas do seu grupo de trabalho no último trimestre do ano.

O bastonário dos solicitadores e dos agentes de execução, José Carlos Resende, diz não ser compreensível os processos de regulação do poder paternal terem também custas, por exemplo. E não são só os particulares a queixarem-se de que algo não vai bem: o secretário-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, João Paulo Raposo, fala dos casos em que as custas são “uma verdadeira barbaridade, até pela sua imprevisibilidade”: há empresas que, “quando as contas são feitas, no final do processo, se sujeitam a pagar três ou quatro milhões de euros”. Mas se existe consenso sobre a necessidade de mudar o actual sistema, já as soluções avançadas pelas diferentes classes não são todas iguais - muito embora alguns defendam a ideia de que as custas dependam do nível de rendimentos de cada um. “Contaram-me que houve processos em que o Banco de Portugal esteve isento de custas. Não pode ser!”, indigna-se o presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais, Fernando Jorge.

Já a utilização da chamada delação premiada para combater a corrupção, um dos muitos temas em discussão no grupo de trabalho que se dedicou à criminalidade económico-financeira, não houve, até ao momento, acordo. Os advogados opõem-se à implantação de um mecanismo defendido por certos sectores em Portugal, entendem colidir com os direitos fundamentais dos cidadãos. Na realidade, a lei portuguesa já tem alguns mecanismos que permitem à justiça aproveitar denúncias feitas por arrependidos – muito embora a um nível que não se compara ao que se passa em países como o Brasil, onde os criminosos podem negociar sem restrições reduções ou isenções de pena se denunciarem os seus cúmplices. “Acho possível encontrarmos um meio termo”, diz o bastonário dos advogados, Guilherme Figueiredo. Não está assim descartado um acordo para melhorar o regime em vigor no que respeita à fase em que os processos estão sob investigação. O enriquecimento ilícito foi outra matéria discutida, numa altura em que o Parlamento está quase a chegar a um consenso sobre este tipo de matérias.

“No final aquilo que apresentarmos ao Presidente será a convergência possível”, admite o representante dos advogados. Será ele quem levará a carta a Garcia daqui a dois ou três meses. E percebe-se alguma impaciência por parte de Marcelo Rebelo de Sousa. “Espero recebê-los até ao Verão, para ver se antes de Janeiro é possível ou não dar passos que se traduzam em iniciativas legislativas”, observou em entrevista ao Diário de Notícias, no final de Julho. E não se coibiu de acrescentar que levará a sua magistratura de influência até ao limite dos poderes de em que está investido.

“Depois do pontapé de saída, o pacto fará o seu caminho na sociedade civil”, explica Guilherme Figueiredo. Quanto aos parceiros que o geraram durante estes 12 meses, querem continuam a reunir-se periodicamente para discutir as questões que preocupam o sector.

Por estranho que possa parecer, nenhum dos quatro grupos de trabalho se dedicou à reflexão sobre os atrasos na justiça – muito embora o tema tenha sido abordado transversalmente consoante as áreas de trabalho de cada um deles. As demoras são particularmente críticas nas acções executivas, que dizem respeito aos processos de cobrança de dívidas. Por isso, diz o advogado Raposo Subtil, que também tem estado envolvido nos trabalhos do pacto, faria sentido existirem em todo o país juízes verdadeiramente especializados em matérias destas e congéneres, como as insolvências. “Será que a cobrança de dívidas não pode ser um processo administrativo?”, questiona por seu turno o representante dos juízes. A sê-lo, libertaria muitos destes profissionais para outras tarefas – mas representaria menos 600 ou 700 mil processos para os advogados, equaciona.

As propostas de aprofundamento da especialização deverão alargar-se também aos magistrados dos tribunais de segunda instância, os da Relação. Porque não faz sentido um juiz sem experiência em assuntos de família ir julgar a decisão de um colega de primeira instância sobre um caso deste género, alega o bastonário dos advogados.

Consensual também será a criação de gabinetes de comunicação nos tribunais – porque, como já criticou o Presidente da República, o cidadão raramente se depara com explicações para o que vai sucedendo na justiça.

Ainda ao nível da organização dos tribunais, o presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais fala da necessidade de revisão de alguns aspectos do mapa judiciário, como o desdobramento de comarcas em Lisboa e no Porto. “Para haver melhorias tem de haver investimento”, avisa Fernando Jorge. “Quer no sistema informático quer na formação dos operadores judiciários. Vamos ver se o Governo consegue dar uma resposta à altura. Tenho dúvidas”.

“Admito que nalgumas áreas, que não na justiça penal e na justiça económica, se consiga encontrar consenso”, antecipa Raposo Subtil. “Não me parece que as conclusões possam ser tão impactantes como desejaríamos”, refere por seu turno Fernando Jorge. "Relativamente a algumas matérias poderá haver consenso", diz, cauteloso, o representante dos procuradores, mostrando-se porém descrente em relação ao valor que o poder político dará às sugestões dos parceiros. 

“Pode ser que demore. Que os pequenos passos conheçam avanços e recuos. Que a via seja sinuosa ou acidentada”, antecipou Marcelo há um ano. Para a seguir deixar um aviso à navegação sobre as consequências de uma eventual falta de consenso entre os agentes da justiça: “O pior que pode acontecer é a sedimentação de um bloco central de interesses que acabe por inviabilizar o que é preciso fazer. É contra esse risco que os parceiros sociais da justiça têm uma palavra a dizer”. Sob pena de que tudo fique “tão ou mais pantanoso - e tão ou mais equívoco aos olhos dos portugueses”. 

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