Os anjos têm sede
Irónico, elegante e erudito, Anatole France narra com saber e domínio. Neste romance de anjos revoltosos, arquitecta uma intriga mais velha que o mundo, mas dá-lhe novas feições.
Quando Paul Valéry foi eleito para a Academia Francesa, por morte de Anatole France, nem uma vez se referiu ao seu predecessor, ao proferir o protocolar discurso de agradecimento — em que tal prática era corrente. De certa forma, era natural que Valéry nem sequer aludisse a France. O autor de Thaïs (Antígona, 2003, trad. Manuel de Freitas) representava um mundo que o de Valéry contrariava. Em muitos aspectos, Anatole France foi um autor pré-moderno. Nas escolhas temáticas e estilísticas, na plausibilidade das suas tramas romanescas, até no seu “cartesianismo”, France prolongou uma mundividência que os modernismos ajudaram a revogar. Não admira, por isso, que Pessoa tivesse clamado, através do altifalante feroz de Álvaro de Campos (no Ultimatum): “Fora tu, Anatole France, Epicuro de farmacopeia homeopática, tenia-Jaurès do Ancien Régime, salada de Renan-Flaubert em loiça do século dezassete, falsificada!” E, no entanto, a obra de Anatole France (a cujo Le Jardin d’Épicure a sanha de Campos, decerto, alude) está longe de não ter interesse. Nem tão-pouco deixa de ser sólida a sua posição cívica, como intelectual atento às manobras e tensões da pólis. Pese embora o conservantismo de muitos dos seus motivos e edifícios ficcionais, a sua capacidade de desmontar certos pressupostos culturais em prol de uma reinvenção idiossincrática está patente em registos como As Sete Mulheres de Barba Azul (Estrofes & Versos, 2009, trad. Susana Pires), ou no conto O Procurador da Judeia (Anatole France, Atlântida, 1958, trad. Augusto de Freitas). São ficções em que o “classicismo” de France impõe a revisitação de um universo estável, nas suas referências, implicações e ressonâncias — cabendo ao autor introduzir a divergência através de deslocações na perspectiva, rotações mais ou menos subtis que a ironia de Anatole France sabia sagazmente gerar. É também esse o caso de A Revolta dos Anjos. Neste romance de 1914, France adopta um tema com raízes profundas no imaginário cultural do Ocidente: os anjos que obedecem e os que se rebelam contra Deus. Tratada de forma inultrapassável por Milton — que France chega a parafrasear: “E mais vale a liberdade nos infernos do que a escravidão nos Céus.” (p. 115) —, a insurreição angelical é aqui distorcida, revista e actualizada. O autor de A Ilha dos Pinguins (Portugália, trad. Alexandre Cabral, 1976) imagina que os anjos em sedição poisam em França, e cria para eles um eixo humano, aglutinador das movimentações celestes, uma família ilustre daquela nação — d’Esparvieu, cujo memorial tece, abreviadamente, “desde 1789 até aos nossos dias” (p.7). O que, no caso, corresponde ao ano de “1912” (p. 17), ou seja, os anos agitados da Terceira República, já depois da separação de poderes, do caso Dreyfus (cujo partido France tomou, embora não desde o início), do ambiente geral, enfim, que preparava o terreno para a Primeira Guerra Mundial.
Essa atenção à arcadura histórica dos enredos será uma constante em todo o romance. O membro mais ilustre da família d’Esparvieu, por exemplo, fora “vice-presidente do Conselho de Estado durante o Governo de Julho” (p. 7), ao passo que outro antepassado havia alcançado a dignidade de “prefeito do Império e grande referendário do selo de Estado da França no reinado de Carlos X” (p. 9). Há acontecimentos que decorrem, por hipótese, “num desses períodos climaticamente intermitentes da Terceira República” (p. 171). Mas até personagens que ocupam lugares nada proeminentes carregam esse lastro da História, como a amante do frascário artista Guinardon, que “fora amada, segundo voz corrente, pelo imperador Napoleão III” (p.26); e mesmo os objectos mais desconchavados evocam certo passado histórico — “um espadeirão com a bainha em passador, com um estilo Luís XIII-Napoleão III” (p.146). Até os traços mais ínfimos de uma personagem indiciam esse projecto de apresentar os enredos de encontro a um cenário histórico concreto, ou a um rasto inteligível da História: geralmente, a francesa — “Pela cegueira, só é comparável a Carlos X, o seu rei preferido.” (p. 165) Estas são presenças que não só permitem introduzir os marcadores temporais que Anatole France zela por semear ao longo do texto do romance, mas também deixam entrever convulsões marcantes da História francesa: guerras entre legitimistas e republicanos, exigências imperialistas e reivindicações da república. Além de inserir uma dinâmica que a France interessava estudar e trazer para a criação romanesca — a Igreja nas suas relações quase sempre resvaladiças com o poder temporal.
Todo o livro se constrói, aliás, sobre um aglomerado de conflitos e debates. É a disputa filosófico-religiosa; a confrontação travada na esfera da política, opondo a filiação republicana à memória monárquica, e vários ressurgimentos da realeza; a querela dos clássicos e dos modernos, em que se terçam armas pela obediência aos cânones e pelas liberdades pictóricas (e em que se reedita, estafada, a luta entre as “inovações” de um Delacroix, antigo de várias décadas, e o passadismo academicista de alguns). E é esse um dos nós que se enlaça no conflito principal — o que opõe os anjos a Deus. As questões da representação das imagens divinas na pintura permitem a Anatole France fazer uma transição harmoniosa para a revolta do título. Porque, quando as personagens se postam diante dos quadros que discutem, não é apenas a estética que debatem, mas a atitude perante o divino: a possibilidade de o fixar de uma ou outra forma pictoricamente, sim, mas também a própria (im)possibilidade da sua existência.
Em contraste com a altura estratosférica do enredo celeste, os agentes e enredos terrenos são — deliberada ou casualmente, será discutível — comezinhos, deslaçados, confusos e de um prosaísmo canhestro e, por vezes, aflitivo. Enquanto mantém uma relação com uma mulher casada, Maurício, filho-família dos d’Esparvieus, perde o seu anjo-da-guarda. Sariette, bibliotecário da opulenta mansão, “o velho dos livros” (p. 36), é um maníaco zeloso dos “seus” tesouros bibliográficos, que enlouquece quando um dos anjos revoltosos, numa demanda secreta pelo saber terreno, faz cair por terra a organização pristina da biblioteca. Mas, sobretudo, porque, desfeito um intrincado novelo de peripécias, há um valioso título do acervo — um livro sobre o poeta latino Lucrécio anotado pelo punho de Voltaire — que acaba por se transviar, perdido nas malhas do alfarrabismo de luxo. Os movimentos que precedem e, acima de tudo, os que explicam as tramas celestes são, claramente, superiores. Em termos de solidez da narrativa, de coesão de fluxos desavindos, no que respeita à feitura da prosa, inclusive. Um dos pontos máximos do romance é, precisamente, a narrativa de Nectário, o anjo-jardineiro. Nela se relata a Criação — “Entretanto, a Terra nascia. O seu orbe imenso e nebuloso comprimia-se e afirmava-se de hora a hora. As águas que nutrem as algas, as madrepérolas e os moluscos, que se arrastam nas suas ondas ligeiras os náutilos já não a recobriam inteira: abriam leitos entre massas sólidas e os continentes surgiam. No limo cobriam-se as florestas e diversas raças de animais começaram a pastar nos prados” (p. 116) — e as primeiras insurreições dos anjos que “desertavam em multidões do Monte do Senhor e levavam ao Serafim [Lúcifer] as homenagens que o Outro queria só para ele” (p. 111). Insurreições, essas, que o presente da narração quer repetir. A partir da Criação, a narrativa dos anjos revoltosos — volvidos em demónios — passa a ser a História da humanidade relida à luz de uma permanente presença desses seres sobre-humanos. Estes singram em períodos como o Renascimento, como padecem durante a Contra-Reforma. São um reflexo aumentativo e transcendente das vicissitudes da marcha humana — “o reino dos Céus é uma autocracia militar e não há nele opinião pública” (p. 77). E é exactamente devido a essa convergência do terreno com o supernatural que a cidade de Paris vai sofrer, no terreno, as implicações físicas de uma guerra, digamos, metafísica. O espírito irónico de Anatole France faz de Satã o grande vencedor da contenda celeste. Este é um anjo caído, de acordo com a tradição, mas que guiou pela sede de conhecimento a sua sublevação. A justiça da sua demanda alcança o cume na decisão com que encerra o romance. Mantendo um casamento de aparências, em que Deus é adorado como se verdadeiramente reinasse, Satã contenta-se, “abnegadamente”, com uma vitória invisível, ou apenas metafísica — “Todos os fiéis ficarão na obrigação de se conformarem com as tuas [de Deus] determinações. A minha Igreja é eterna e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela. És infalível. Nada mudará.” (p. 227)
Filho de um livreiro, Anatole France trabalhou durante cerca de 15 anos na Biblioteca do Senado, ao lado de Leconte de Lisle. Era o que se chama um bibliófilo. “Bibliofilia”, aliás, é o nome de um dos seus artigos por si recolhidos em La Vie Littéraire, onde reconhece: “o bibliófilo é escravo das suas colecções”. Não terá sido modelo do enlouquecido Sariette, mas a sua cultura livresca determinou muitas das suas realizações literárias. Os seus livros estão repletos de apontamentos eruditos, como em Pierre Nozière, onde o herói epónimo, duplo ficcional de Anatole France, escreve as suas reflexões à margem de um espesso volume de Plutarco. Do mesmo modo que Arcádio, o transviado anjo-da-guarda de Maurício d’Esparvieu, salta de Santo Agostinho para São Jerónimo, ou destes para Damasceno, em voos de erudição que tentam esclarecer um primeiramente céptico Maurício. Informada, segura, hábil, a ficção de France acaba por ser o somatório de uma infância passada entre os livros da livraria e da biblioteca paterna, os anos de bibliotecário, coroados por uma entrada apoteótica na crítica literária. Se hoje o seu papel como crítico está muito posto em causa, e se a sua obra romanesca caiu quase em esquecimento total, é de saudar que se resgate do oblívio alguma da sua vasta produção. Como este A Revolta dos Anjos.