A fluidez sexual é muito antiga na Londres gay

Por muito tempo, as sexualidades não tinham nome, eram actos e não identidades, o que desmonta a originalidade que hoje julgamos viver.

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Londres, cidade subversiva, era no século XVIII um íman para homens e mulheres que queriam ser o que desejavam

Há uma ideia forte, mas é das poucas. E chega-se a ela por um episódio já muitas vezes contado. Numa noite de Dezembro de 1394, o prostituto John Rykener foi detido pelas autoridades londrinas dentro de uma tenda de comércio em Soper Lane, junto à rua hoje conhecida como Cheapside, na companhia de outro homem, a “praticar aquele vício detestável, inominável e ignominioso”. Identificava-se como Eleanor e foi encontrado vestido de mulher, tendo dito aos oficiais que aprendera o ofício com uma prostituta e que fora uma bordadeira a explicar-lhe como usar roupas de mulher. Na casa desta, tinha estado um padre que o penetrou “como se de uma mulher se tratasse”. Mais disse que tinha vivido em Oxford como bordadeira, aí praticando com professores o “abominável vício com frequência”, e no regresso a Londres tivera relações sexuais com tantos padres e frades que já não lembrava os nomes e “como homem” tinha tido estado com inúmeras mulheres, muitas delas freiras.

Parece que o episódio terminou sem consequência, mas serve ao autor para tirar conclusões: “Eis uma história queer, com frades e freiras que pagavam por diferentes serviços sexuais de um jovem obviamente atraente e provavelmente efeminado. Ele era libidinoso, mas seria homossexual, bissexual, heterossexual ou isto tudo ao mesmo tempo? Mais uma vez, as categorias não se aplicam. A sexualidade era fluida, infinitamente maleável e de condição indefinida. Invadia as ruas de Londres como o cheiro das tartes ou da doçaria” (p. 38).

É óbvio, mas faz falta lembrar. No fim do século XIV, e por muito tempo, as sexualidades não tinham nome, eram actos e não identidades, o que desmonta a originalidade que hoje julgamos viver, segundo a qual vigora a fluidez de géneros e orientações sexuais. É facto que hoje queremos prescindir de designações, em nome da via original de cada um, mas ainda ontem reclamámos categorias bem definidas, para sublinhar a visibilidade pública e derrubar a “vergonha”, e tão cedo não nos livramos delas. Mas nem sempre foi assim.

Tira-se isto e pouco sobra de um livro de 262 páginas em que, depois, vai ser preciso esperar até à 148 para se espremer uma segunda ideia, e ela dura até à 151.

Em Maio, quando Queer City saiu em Inglaterra, a editora informou os jornalistas de três factos que ajudariam a apresentar o livro junto dos leitores: aproximavam-se as festas do Orgulho LGBT de Londres; a 27 de Julho cumpriam-se 50 anos sobre a aprovação da lei que descriminalizou em parte as práticas homossexuais em Inglaterra; e o autor em causa vendeu mais de 200 mil cópias de London: The Biography, editado há 17 anos.

Acontece que Peter Ackroyd (n. 1949), considerado um dos maiores cronistas de sempre da capital inglesa, não quis ir além do catálogo de práticas e da curiosidade endoscópica. O homem que assinou biografias de Thomas More, Dickens ou Ezra Pound, com vários livros de poesia publicados, alguns ensaios sobre cidades e 15 romances históricos, muitos traduzidos em Portugal, propõe uma narrativa que não acontece. Queer City não chega a ser crónica, porque é colecção de relatos, e não resulta de investigação própria, é apenas levantamento. Com a ajuda de três assistentes, lê-se no fim. Ter saído em redor de datas festivas, ou vir de um autor tão popular, não lhe dá vantagem.

Trata-se de um volume de capa dura, em pequeno formato, com verso de capa e de contracapa em rosa forte, composto por 18 capítulos titulados, cada qual iniciado por uma gravura histórica alusiva, e uma lista bibliográfica de dez páginas — onde consta o fundamental Born to Be Gay, de William Naphy, saído em 2004. A meio do livro encontram-se dois blocos autónomos com fotos e imagens de arquivo.

Parece haver um problema de objecto. Ou de título. Peter Ackroyd passa a maior parte do tempo a falar sobre homossexualidade como tema geral, o que tem o maior dos interesses mas nada acrescenta sobre Londres.

O autor resolve cada derivação com duas ou três referências, quase despropositadas, a ruas ou zonas da cidade. Interessam-lhe os casos escatológicos colhidos algures (as fontes nem sempre aparecem referidas), o que estaria muito bem, não fosse o título.

Os relatos permitem entender o de sempre: que a homossexualidade foi tapada ou destapada ao sabor da conveniência dos poderes. Até ao Acto de Supremacia, de 1534, que tornou Henrique VIII chefe supremo da Igreja Anglicana, os actos homossexuais gozaram de alguma aceitação, apesar da pontual perseguição católica, estabelece Ackroyd. Mas o leitor é deixado sem contexto nem interpretação, excepção feita, como se disse, à passagem iniciada na página 148, onde se afirma que a questão central do livro é a de saber qual a relação entre minorias sexuais e a cidade — o que está longe de ficar respondido.

Londres, cidade subversiva, será no século XVIII um íman para homens e mulheres que queriam ser o que desejavam, defende. O anonimato proporcionava espaço para vestirem as personagens que mais lhes conviessem a cada momento. “A cidade era conhecida por ser um labirinto e uma selva, na qual a vida gay poderia crescer, com cada rua ligada a outra e depois a outra; um sem-fim de possibilidades para os aventureiros. Uma inquietante necessidade de exploração” (p. 149).

Isto apesar de o ambiente libertino de Londres, com os seus famosos bordéis de homossexuais (“molly houses”), ter levado homens de leis à criação da Society for The Reformation of Manners, na última década do século XVII, já sob o reinado de Guilherme III, ele próprio considerado homossexual. Foi o início de uma era de detenções e perseguições.

No último capítulo, o autor passa em revista o século XX e o início do XXI, não esquecendo a crise da sida e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Revela-se problemática a frase sobre a “emergência de outros tipos de sexualidade [other types of sexuality], incluindo os transgénero e a transexualidade” (p. 226), o que parece constituir um enorme lapso sobre o que é a identidade de género.

As primeiras páginas são sobre as origens das palavras que ao longo dos séculos designaram pessoas não heterossexuais, incluindo “gay”, que virá do provençal antigo, “gai”, equivalente a “feliz” ou “vivaço”, cuja conotação actual surge a partir dos EUA nos anos 1940. Nota o autor que aos homossexuais se chamou em inglês, até há pouco tempo, “backgammon players”, alusão possível ao facto de o gamão ter sido jogado noutras épocas na parte de trás do tabuleiro de xadrez.

Ackroyd é um óbvio cultor do bem dizer, familiarizado com expressões latinas ou francesas, que usa com elegância. Sugere que as palavras “gay” ou “queer são anacrónicas quando aplicadas a realidades anteriores à segunda metade do século XX, mas recorre a elas para simplificar o discurso, o que faz todo o sentido.

A correr, anota também o aparecimento, a partir do século XIX, do dialecto polari, uma “estranha miscelânea de romani, iídiche, língua franca, calão cockney, palavras invertidas e gíria de saltimbancos” (pág.185). “Huge cartzo” significava pénis grande; “bona ecaf”, rosto bonito; “omi-palone”, homem efeminado; “martinis”, mãos. O polari — ou palare, como se ouve numa canção de Morrissey, Piccadilly Palare — foi um código oral usado em Londres durante o século XX, especialmente por gays, marinheiros e no meio teatral, sendo hoje raríssimo.

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