A Mercedes ainda pode ter muito para revelar e Portugal embarca em mais uma expedição ao lugar onde está afundada
Dois arqueólogos e um técnico de conservação e restauro acompanharão esta sexta-feira a missão espanhola que vai fazer trabalhos de prospecção na fragata afundada ao largo da costa portuguesa em 1804 e recolher mais exemplares da sua carga.
Depois de perder uma batalha naval que a levou ao fundo do mar, no Golfo de Cádis, em 1804, e de vencer outra, na Justiça, que acabou em 2012 quando o Supremo Tribunal norte-americano ordenou à empresa de caçadores de tesouros Odyssey Marine Exploration que devolvesse a Espanha mais de meio milhão de moedas de ouro e prata que pertenciam a esta embarcação, a fragata Nuestra Señora de las Mercedes vê-se envolvida em mais um combate, desta vez pelo conhecimento.
Começa esta sexta-feira a terceira campanha do Estado espanhol nos destroços deste navio que habitualmente cumpria a rota entre Espanha e as suas colónias na América. Entre outras coisas, escreve o diário El Mundo, os especialistas querem agora descobrir o que guarda ainda esta embarcação que repousa no fundo do mar, a mais de mil metros de profundidade, numa área que se mantém por explorar: “A zona Este ou de Levante do barco está na penumbra e suspeitamos que ali possa haver muito material arqueológico”, disse recentemente aos jornalistas Iván Negueruela Martínez, o director científico da missão e do Museu Nacional de Arqueologia Subaquática espanhol, em Cartagena, onde estão guardados todos os artefactos já recuperados da fragata pela Odyssey e pelo Estado.
Dando continuidade às anteriores campanhas dos Verões de 2015 e de 2016, os trabalhos que decorrerão ao longo dos próximos dez dias contarão também, e pela primeira vez, com a presença de dois arqueólogos portugueses de subaquática e com um técnico de conservação e restauro especializado, confirmou ao PÚBLICO a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC).
É através desta entidade que Portugal – que, tal como Espanha, foi um dos primeiros estados a ratificar a Convenção da UNESCO para a Protecção do Património Cultural Subaquático de 2001 – se associa a este projecto científico apostado em resgatar a memória de uma embarcação que foi ao fundo durante um combate com uma esquadra britânica e que, segundo os registos da sua carga, transportaria 17 toneladas de moedas de prata e ouro, “fortunas pessoais, artefactos de prata, jóias, entre outros”.
A missão envolve o Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC), o Instituto Espanhol de Oceanografia e a Marinha espanhola e decorre a bordo do Sarmiento de Gamboa, um navio do CSIC que receberá os três técnicos portugueses esta sexta-feira.
A presença nacional na missão que fará trabalhos de prospecção e recolha de bens móveis com recurso a um ROV (Veículo Operado Remotamente, na sigla em inglês) – os destroços estão a 1130 metros de profundidade, o que não permite que os arqueólogos mergulhem – resulta de um convite espanhol mas inscreve-se, também, “nas competências atribuídas à DGPC no que toca à fiscalização e acompanhamento dos trabalhos arqueológicos” que autoriza, explicou este organismo do Ministério da Cultura.
A área de incidência dos trabalhos da missão espanhola está dentro da Zona Económica Exclusiva portuguesa, o que implica, de acordo com a convenção da UNESCO para o património que está ou vem do mar, que qualquer actividade científica seja autorizada pelo Estado português.
“Os objectivos desta missão são continuar a identificar a extensão total do sítio arqueológico; elaborar uma cartografia batimétrica detalhada do local e da geomorfologia do fundo marinho; registar os danos causados pela intervenção não científica da companhia norte-americana Odyssey Marine Explorations e proceder a um trabalho arqueológico de investigação científica”, enumera a DGPC num email enviado ao PÚBLICO.
Esta terceira campanha com recurso a um robô submarino comandado à distância pode ser a última na Nuestra Señora de las Mercedes, ainda segundo o jornal El Mundo. Nas duas anteriores foram recuperados 50 objectos – entre eles pratos, talheres vários, um canhão de bronze, bandejas e candelabros de prata, peças de cerâmica, um baú com um selo na tampa e nove moedas lá dentro em bom estado de conservação, e até um almofariz em ouro –, alguns deles referidos nos documentos que o Arquivo-Geral das Índias, em Sevilha, tem à sua guarda sobre a carga desta fragata afundada pela marinha britânica.
À semelhança do que aconteceu nas anteriores campanhas, os objectos resgatados ao mar este ano serão depois tratados, estudados e, alguns, expostos no museu de Cartagena, onde uma grande exposição recriou, em 2014, a última viagem desta fragata e a longa batalha legal que opôs o Estado espanhol à empresa norte-americana Odyssey, e que viria a sagrar-se, nas palavras do Governo de Madrid, um “êxito jurídico, histórico e cultural”.
Uma fragata, duas batalhas
Foi a 5 de Outubro de 1804 que a Nuestra Señora de las Mercedes, que fazia parte de uma armada composta por outras três embarcações – Medea, Clara e Fama – e liderada pelo experiente Diego de Alvear, foi alcançada por uma esquadra britânica formada por outras tantas fragatas. Estava perto do Cabo de Santa Maria, no Algarve, a um dia apenas do Porto de Cádis. Perante a recusa do comandante espanhol em entregar a riquíssima carga que transportava, os ingleses deram início ao combate e, em pouco tempo, afundaram a Mercedes, que levava 275 pessoas a bordo.
O que aconteceu naquele dia há mais de 200 anos é descrito por várias fontes, incluindo o relato feito por Alvear, que então perdeu a mulher e sete dos seus filhos.
Em Maio de 2007, a Odyssey anunciou ter localizado a fragata e fez saber publicamente que transportaria para os Estados Unidos um carregamento de meio milhão de moedas de prata e ouro (na sua esmagadora maioria de prata) e outros artefactos que retirara dos destroços de um navio a que chamava Cisne Negro.
Esta operação da empresa de caçadores de tesouros, que tinha já má fama em Espanha, foi então alvo de uma investigação por parte das autoridades, que convocaram historiadores e cientistas na tentativa, que viria a ser bem sucedida, de identificar os destroços espoliados pela Odyssey.
Depois de comprovado que pertenciam à Mercedes e que esta era um navio de bandeira – uma embarcação que se encontrava ao serviço da coroa espanhola –, e invocando legislação nacional e internacional, Madrid resolveu levar o caso a tribunal. O processo arrastou-se por cinco anos, mas acabou com a empresa obrigada a devolver o que levara para os Estados Unidos ilegalmente, sob acusações de ter danificado vários dos objectos recolhidos.
Agora a missão é integralmente científica e, no respeito pela Convenção da UNESCO, manterá a maior parte do espólio onde esteve nos últimos dois séculos – no fundo do mar.