“Queria ter um sítio onde pudesse velar o meu bebé”

Em Junho, 11 corpos de fetos ou recém-nascidos não reclamados esperavam no Instituto de Medicina Legal. Alguns pais não querem ver o corpo e outros não são informados e não o reclamam. Outros queriam enterrar os filhos com menos de 24 semanas, mas a lei não os deixa.

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A lei não permite o funeral de bebés com menos de 24 semanas Oxana Ianin

No final de Junho deste ano, eram onze os cadáveres não reclamados de fetos ou recém-nascidos que estavam nas delegações de Lisboa, Porto e Coimbra do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses (IMLCF). No final do ano passado eram cinco.

“Há pais que não querem mesmo ver o corpo do bebé, por opção”, diz Vítor Varela, presidente da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica da Ordem dos Enfermeiros. E, nesse momento, o corpo do feto ou recém-nascido fica “por reclamar”. “Por outro lado, há alguns pais que não são informados e não reúnem a informação suficiente para poderem optar por ver o bebé antes de ir para a morgue”, acrescenta Vítor Varela.

“Há o lado legal das questões, mas depois há o lado emocional. E o nosso país é bastante deficiente no apoio que dá aos pais para viverem as questões de luto na perda gestacional. Até porque as pessoas têm crenças religiosas bastante díspares e isto não é sequer tido em consideração”, sublinha Sara Vale, presidente e co-fundadora da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto.

Luto solitário

“Quando as mães perdem os bebés, muitas vezes ainda nem disseram a toda a gente que estavam grávidas e, por isso, quando elas dizem que perderam o feto é quase um luto solitário porque ninguém sabia. Não há muitas vezes o reconhecimento de que se perde algo, porque as pessoas nem estavam a par da gravidez”, explica Sara Vale.

Portugal optou por um caminho. Mas há outros. “Num país como a Inglaterra uma das grandes diferenças que se vê em relação a Portugal nestas questões da perda gestacional é a formação específica que alguns profissionais ingleses têm neste campo, o apoio psicológico dado aos pais e o respeito que há pela perda gestacional. Eles enquadram a perda gestacional como um parto, em que a mulher precisa de apoio no período das contracções e no fim, se desejar, pode ver o feto. Têm por exemplo berços frigoríficos em que o corpo está à disposição dos pais. E perguntam aos progenitores se querem ver o bebé, se querem dar o nome, se querem tocar”, afirma Sara Vale quando faz um retrato britânico em matéria da perda gestacional.

A presidente da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto acredita que a dor pode ser diminuída com pequenos gestos. “É claro que há certas práticas que não se conseguem transplantar de uma cultura para outra, mas acho que há bastante a aprender com a sensibilidade dos ingleses. Por exemplo, deve haver o cuidado de os pais estarem numa ala do hospital onde não estão outras mães, onde não se ouvem outros bebés a chorar”, defende Sara Vale.

Há casos em que o certificado de óbito e o funeral são necessários, noutros não. Segundo o director do Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da Reprodução do Hospital de Santa Maria, Carlos Calhaz Jorge, “na morte fetal espontânea com mais de 24 semanas de gestação é obrigatório certificado de óbito e o funeral. No caso da Interrupção Médica da Gravidez ou morte fetal espontânea com menos de 22 semanas nunca há certificado de óbito nem funeral”. Nos casos intermédios, a morte fetal espontânea entre as 22 e as 24 semanas, cabe ao casal optar por certificado de óbito e funeral ou não.

As regras estão escritas mas alguns progenitores levantam questões. “Nunca me disseram o que ia acontecer”, afirma Sílvia Melo, agora 36 anos. “Eu tive duas perdas gestacionais. Na primeira o feto tinha 20 semanas e na segunda tinha oito semanas. Disseram-me que o bebé ia para analisar no Centro de Genética Clínica do Porto. Mas nunca me disseram o que depois acontecia com o corpo”, explica.

“Queria ter um sítio onde pudesse velar o meu bebé”, diz Sílvia. “Eu queria muito. Eu pedi muito. E disseram-me que era a lei. Que não a podiam alterar”, conta. “Mas explicaram-me também que antes das 24 semanas eu não podia fazer funeral. Na altura afectou-me muito não ter o corpo do bebé. Não saber onde ele estava. Acho que teria sido bom para mim e para o meu luto ter feito funeral”, afirma Sílvia Melo.

Não há uma lista

 "Não há” um número total e exacto de corpos — de crianças e adultos — não reclamados em Portugal, diz Carlos Almeida da Associação Nacional de Empresas Lutuosas (ANEL).

A única conta que está feita resulta em 67 corpos que, em Junho deste ano, esperavam nas delegações do Instituto de Medicina Legal em Lisboa, Porto e Coimbra. Os cadáveres não reclamados que estão nas morgues dos hospitais ficam à espera de serem incluídos na soma.

A morte chega e ninguém a reclama. Espera-se 30 dias por um telefonema. E ninguém reclamou o corpo que jaz na morgue. “O Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses tem de aguardar no mínimo um mês pela reclamação dos corpos”, esclarece Pedro Tavares, porta-voz do Ministério da Justiça, que tutela o IMLCF. Só pode reclamar o cadáver, segundo a lei em vigor, “o testamenteiro”, o “cônjuge sobrevivo”, a “pessoa que vivia com o falecido”, “qualquer herdeiro” e “qualquer familiar”.

No final do ano de 2016, 58 corpos não tinham sido reclamados nas delegações do IMLCF. A meio deste ano, já eram 67. E há mais cadáveres sem reclamação, mas não se sabe quantos. Entre os que ficam nos hospitais e os que vão para o IMLCF, não existe uma lista que cruze os dados dos corpos não reclamados. Por exemplo, no Centro Hospitalar do Algarve, até à data, há três cadáveres, todos do sexo masculino, de nacionalidades espanhola, soviética e alemã.

O último dia de 2016 contava com 58 corpos não reclamados com mais de um mês de espera. Em 2014, o Instituto de Medicina Legal tinha lidado com 54 corpos não reclamados. Os números não se alteram muito. Mas este ano a marca dos sessenta cadáveres com mais de um mês já foi ultrapassada no mês de Junho.

Não há uma lista com todos os corpos não reclamados a nível nacional. Uns esperam no Instituto de Medicina Legal, outros nos hospitais. Mas só o IMLCF faz a soma de cadáveres não reclamados nas cidades de Lisboa, Porto e Coimbra. A restante estatística não é conhecida.

“Concordo com a existência da lista caso seja criada para fins estatísticos, visto que ainda não há uma forma de saber quantos cadáveres existem nestas circunstâncias”, afirma Carlos Almeida da ANEL.

Trinta dias depois de ninguém reclamar o cadáver, a responsabilidade pelo corpo transita imediatamente para as autarquias. “Compete à câmara municipal do local onde se encontre o cadáver promover a inumação do cadáver não entregue”, explica a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias ao PÚBLICO.

O fim chega sem família

“Quando vier a Primavera/ Se eu já estiver morto/ As flores florirão da mesma maneira”, esperava Alberto Caeiro. O heterónimo de Fernando Pessoa não contava que Luís Silva, da Funerária de Santa Cruz do Bispo, se preocupasse com as flores que acompanham o funeral dos corpos não reclamados. No fim dos trinta dias de espera, o agente funerário é informado pelo IMLCF que está disponível um corpo não reclamado para enterrar. 

“A funerária desloca-se ao IMLCF para levantar a guia de transporte, cópias dos documentos do falecido (se houver). Com esses registos a funerária desloca-se à conservatória do Registo Civil para realizar o assento de óbito. E marcamos o funeral no cemitério de Agramonte, no Porto”, descreve Luís Silva.

Chega o dia. “No dia da inumação a funerária passa pelo IMLCF do Porto para levantar o corpo não reclamado, transporta-o no carro funerário directamente para o cemitério para efectuar o enterro (sem família, só com a funerária e os coveiros)”, as etapas estão todas memorizadas por Luís. 

Texto editado por Pedro Sales Dias

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