A natureza do Luso em 178 milhões de litros de água

Tudo começou com um “olho de água quente”. Aos 165 anos, o segredo da Água de Luso continua a ser a Serra do Buçaco. Acompanhou gerações e há meio século faz parte da história da Central de Cervejas. Vende para 30 países e produz 800 mil garrafas por dia.

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As chuvas hão-de chegar antes do Inverno à Serra do Buçaco, as águas hão-de infiltrar-se nas rochas e circular nas profundezas do subsolo. O nevoeiro que num destes dias quentes de fim de Julho cobre as árvores da encosta até ao Luso desaparecerá ao fim da manhã, trazendo o sol à vila.

Lá em baixo, os carros vão estacionando em frente ao jardim. Trazem as bagageiras repletas de garrafões vazios, para encher nas bicas da fonte de S. João. É uma imagem que se eterniza. O Luso é uma terra de águas e o seu nome confunde-se com a história de uma empresa, a Sociedade da Água de Luso (SAL), a celebrar este mês 165 anos. O recurso natural é o de sempre. E esse, garante quem lá trabalha, é o primeiro segredo da longevidade.

A emblemática pirâmide de vidro que tantos atrai ao jardim é, na verdade, uma fonte de abastecimento público que não está ligada à empresa. A origem da famosa água mineral natural está localizada a alguns metros dali. Vem do Aquífero Termal do Luso, onde o percurso da água pode chegar aos 500 me­tros de profundidade, brotando à superfície a 28 graus. Não por acaso já em 1726 se falava de um “olho de água quente” a que então chamavam o “Banho”, assim documentado no Aquilégio Medicinal, um inventário da autoria de Francisco da Fonseca Henriques.

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O Luso é uma terra de águas e o seu nome confunde-se com a história de uma empresa Paulo Pimenta

Ainda passariam muitos anos até ser fundada a Sociedade para o Melhoramento dos Banhos de Luso, em 1852, e mais alguns até a água começar a ser comercializada, em 1894. A popularidade dos banhos termais foi aumentando e o reconhecimento da água engarrafada foi fazendo o seu caminho no mercado interno. Em 1930 já se vendiam quase dois milhões de litros; em 1970, o volume já ia nos 11 milhões; hoje, a SAL produz em média cerca de 800 mil garrafas por dia, com as vendas anuais a chegarem aos 178 milhões de litros de água (incluindo tanto os segmentos da marca Luso como a marca Cruzeiro, do mesmo grupo).

Na vila, a sociedade continua a ser uma empresa de gerações, onde é fácil encontrar alguém com um pai, uma avó, um irmão ou um primo que trabalha ou já trabalhou na SAL. Com cerca de 110 funcionários, ainda hoje é um dos maiores empregadores da vila. Nuno Pinto de Magalhães, director de comunicação e relações institucionais da Sociedade Central de Cervejas (SCC), a empresa que desde 1970 detém a SAL, fala de um “corpo muito unido, com um orgulho enorme de trabalhar numa marca que é sinónimo de portugalidade”.

A conversa decorre na renovada cafetaria e mercearia gourmet do Casino do Luso, um edifício de 1886 que durante anos foi um lugar primordial de espectáculos e actividades lúdicas para quem passava temporadas nas termas, hoje o espaço museológico da empresa. Pinto de Magalhães trabalha na SCC há mais de 40 anos. Quando vem ao Luso, é como estar em família. E há quem apareça à mesa do café para o cumprimentar, enquanto guia o PÚBLICO pelo percurso da empresa.

O segredo

Toda a história da marca foi feita com base numa garrafa de vidro. O rótulo foi-se adaptando aos tempos, mas a forma da garrafa manteve-se igual ao longo de décadas. A primeira alteração só aconteceu em 2014, ao fim de 162 anos. A garrafa de plástico (em PET) foi mudando, mas a de vidro manteve-se sempre a mesma. Para Maria Oliveira, gestora de marketing de águas, a garantia da marca é o próprio recurso, “a sua qualidade intrínseca, formada pelo ecossistema do Buçaco”. É, para Pinto de Magalhães, “uma marca de modernidade apesar de ser muito antiga, porque tem apostado sempre na inovação”. É a marca mais alta do mercado, do chamado segmento premium.

Livro Branco da Associação Portuguesa dos Industriais de Águas Minerais Naturais e de Nascente, de 2010, descrevia a Luso como uma “água hipossalina, isto é, muito pouco mineralizada, a que vulgarmente se chama levíssima” e de grande estabilidade. A designação de “puríssima” vem de 1903, classificada com este nome por Charles Lepierre quando o químico francês realizou a primeira análise bacteriológica à água termal.

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Para proteger e controlar a nascente, há um perímetro de protecção num raio de 16 quilómetros Paulo Pimenta

Para proteger e controlar a nascente, há um perímetro de protecção num raio de 16 quilómetros. O recente plano de gestão florestal da serra do Buçaco realça a “função purificadora da mata” em relação à água e a sua “mais do que provável” correlação com o aquífero do Luso. “A água que bebemos é impermeabilizada no solo ao longo de centenas de anos. Dizemos que não temos aqui uma fábrica, mas uma unidade de engarrafamento: engarrafamos a natureza”, salienta Pinto de Magalhães.

Numa primeira fase, a nascente tradicional garantiu tanto a produção da água das termas como a do engarrafamento e, a partir de 1974, passou a haver uma captação independente. Hoje há dois furos de captação, um dos quais a 136 metros de profundidade.

A “fábrica”

Já a SAL tinha 118 anos quando a Sociedade Central de Cervejas entra em jogo. A empresa produzia a Sagres e refrigerantes, mas faltava-lhe um pé no negócio das águas. Na Primavera Marcelista, em 1970, decide entrar no capital da Luso, assumindo uma posição maioritária de 53%. A partir daí, a sua história acompanha a história da SCC, nacionalizada no Verão Quente de 1975, e só totalmente de capitais privados em 1990. A distribuição nacional da água passou logo a ser assegurada pela Central, com excepção das exportações, uma área só completamente integrada nos anos 2000.

A integração acontece quando a SCC fica com 100% da Água de Luso, comprando as posições que a Câmara Municipal da Mealhada e a Fundação Bissaya Barreto detinham no grupo. Para Pinto de Magalhães, a clarificação do capital em 2000 foi a decisão mais relevante para a história da empresa. O emblemático Grande Hotel de Luso, projectado por Cassiano Branco, passou a ser gerido pela fundação, com quem a SAL acordou recentemente a gestão das termas.

Outra decisão estrutural aconteceu quando a unidade de engarrafamento passou para a freguesia vizinha da Vacariça, onde já funcionava a unidade da marca Cruzeiro, uma água de nascente do grupo que a SAL comprou em 1954. Agora, o enchimento está a cinco quilómetros do centro do Luso, estando ligado por um pipeline subterrâneo que encaminha a água dos furos das antigas instalações até à Vacariça.

Na fábrica, milhares de garrafas de vidro caminham em fila indiana por um tapete automático em direcção à zona de enchimento. Do lado de fora da sala ouve-se um tilintar compassado; lá dentro está um funcionário vestido como um médico, envergando uma bata branca, uma touca, uma máscara, uns óculos protectores. Não é o único olho atento na sala: está acompanhado de “inspectores” automáticos, robôs com sensores ópticos que garantem o controlo de rejeição das garrafas antes de elas chegarem à zona onde a água é despejada.

A decisão de transferir a unidade para a Vacariça foi planeada em 2002 e concretizada ao longo de uma década, para descongestionar a freguesia e retirar do centro do Luso o impacto negativo da movimentação dos camiões. “Houve alguma resistência, mas foi uma solução consensualizada. As pessoas perceberam que havia um bem-comum – a preservação da vila”. Em 2012, a empresa estava a produzir a 100% na Vacariça.

O mercado interno

As exportações ainda representam pouco, cerca de 7% das vendas. A água chega a cerca de 30 países, sobretudo Estados Unidos, Canadá, Luxemburgo, Suíça e França e outros mercados de emigração. Angola, pelos custos de contexto e pela queda do preço do petróleo, tem agora um peso residual.

Uma curiosidade: a empresa fornece o Exército Americano na Base das Lajes e noutras bases europeias. “A água é aprovada pelas autoridades americanas. Todos os anos há uma auditoria pelos organismos de supervisão americanos”, conta Pinto de Magalhães.

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As exportações ainda representam pouco, cerca de 7% das vendas Paulo Pimenta

Num mercado onde as vendas de água engarrafadas são dominadas pelas marcas da grande distribuição – com 60% da quota –, o grupo também faz o engarrafamento (da marca Cruzeiro) para a marca Amanhecer, do grupo Jerónimo Martins. Entre as marcas de produtor (no segmento dos 40%), a Luso é líder, com uma quota na ordem dos 17%, de acordo com dados fornecidos pela SAL.

A prioridade da empresa continua a ser o mercado interno, onde a venda de águas engarrafadas ainda está a crescer. A concessão actualmente em vigor foi renovada por 50 anos. Dura até 2063. Nessa altura, a Água de Luso terá 211 anos.

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