Gabriel Ançã, o herói que morreu com pena de não voltar a ver o mar
Destemido, nadador exímio, um verdadeiro lobo-do-mar. Salvou mais de cem pessoas das águas do mar, essa força da natureza que encarava como um “toiro em fúria que é preciso dominar”.
Muitos daqueles que se deparam com o busto de bronze daquela figura masculina, com o barrete enterrado na cabeça, dificilmente conseguirão perceber a verdadeira grandeza do homem ali retratado. É verdade que está instalado num dos locais mais visitados do município de Ílhavo - e da região de Aveiro em geral -, a praia da Costa Nova, mas a inscrição presente na base do monumento deixa muito por dizer: “Ílhavo/Ao arrais Gabriel Ançã/1933”. Mais do que um lobo-do-mar, Gabriel Ançã foi um herói. Conta-se que salvou mais de 120 pessoas da morte quase certa nas águas do oceano, feitos que lhe valeram várias medalhas de mérito. Morreu pobre e as suas últimas lágrimas, diz-se, foram provocadas pela certeza que tinha de que já não ia voltar a ver o mar.
Gabriel Ançã nasceu em Ílhavo a 8 de Janeiro de 1845. Filho de gente humilde, acabou por seguir as pegadas do pai, João José Ançã, pescador de profissão. Durante vários anos, seguiu com o pai para Lisboa, de Novembro a Maio, para fazer a safra da pesca do sável. Conta-se que, desde “muito moço, começou a dar provas da sua valentia, nadando, descontraidamente, revelando sempre bom fôlego e melhor estilo”. Isso mesmo escreveu o professor e jornalista Guilhermino Ramalheira, em 1962, já muito depois da morte de Gabriel Ançã (1930), numa publicação que resultou de uma conferência alusiva ao herói ilhavense, promovida pela secção cultural do Illiabum Clube. O jovem Gabriel Ançã era de tal forma bom nadador que chegou a fazer “a travessia do Tejo a nado”. Mais ainda: “Aos 18 anos de idade, estando em Paço de Arcos, algumas vezes tripulou o barco Salva-Vidas do qual era patrão Joaquim Lopes”, apontou, ainda, Guilhermino Ramalheira. Terá sido nesta embarcação que Ançã cumpriu um dos seus primeiros feitos heróicos, quando o salva-vidas acorria ao naufrágio de uma barca inglesa, no Bugio. O jovem nadou até à embarcação dada como perdida e conseguiu salvar uma criança que tinha ficado a bordo.
Entre os actos de bravura protagonizados por Gabriel Ançã que se encontram relatados com pormenor em documentos históricos, está o salvamento de 17 náufragos de um barco francês. Aconteceu na madrugada de 23 de Outubro de 1880, a dois quilómetros da praia da Torreira, na costa aveirense. Nessa altura, Ançã era já arrais de “uma das companhas que ali trabalhavam” e foi com o seu barco em socorro dos náufragos do vapor Natalie. “Logo após a saída do barco para o mar, este embraveceu em fúria ameaçadora e, só com muita dificuldade, conseguiu chegar junto do vapor perdido, recolhendo todos os náufragos”, relatou, ainda, Guilhermino Ramalheira.
“Daí por diante sucederam-se os rasgos de estoicismo que tornaram o Arrais venerado de toda a gente”, escreveu, por seu turno, o jornal O Ilhavense, por ocasião da morte de Gabriel Ançã, lembrando, que, “os reis D. Luís, D. Carlos e D. Manuel quiseram conhecer pessoalmente o valente pescador”. Em vários escritos alusivos ao lobo-do-mar ilhavense, é-lhe atribuído o resgate de um total de 123 vidas, mas não são especificadas datas e pormenores sobre parte deles. Além do episódio do Natalie, o outro caso que foi contado com pormenores, e propalado em várias publicações, prendeu-se com a coragem demonstrada por Ançã numa saída para a pesca, a 11 de Outubro de 1898, na Costa Nova.
O mar agitou-se, de repente, obrigando as embarcações de pesca a regressarem, apressadamente, a terra. O último a tomar o rumo foi o do arrais Ançã, que enfrentava “uma luta de gigantes”, que levou os tripulantes a esgotarem “as últimas energias”. “[…] Certa altura, esses bravos, exaustos e vencidos, cessaram de remar, ante o espanto e o pânico dos que, em terra, seguiam a trágica luta. Mais uma vez, a voz de Ançã se fez ouvir como um trovão, num apelo desesperado, incitando os seus companheiros a continuarem a remar”, evocou Guilhermino Ramalheira. Graças a essa ordem e provocação, o barco conseguiu chegar a terra. Gabriel Ançã “arrancou a uma morte quase certa, 40 pescadores”, contabilizou o professor e jornalista ilhavense no escrito de 1962.
Ançã encarava o mar como "um toiro em fúria que é preciso dominar". Vencia-o, não em faenas de artista, mas em pegas de caras, à portuguesa. […] Não procurava a luta para se destacar como fanfarrão atrevido… Porém, metido nela, batia-se como um leão na defesa da vida dos outros”, caracterizou o jornalista.
Várias medalhas e uma pensão do Estado
A bravura de Gabriel Ançã foi reconhecida pelos mais altos responsáveis da nação. Em 1886, foi condecorado, pelo rei D. Luís, com a medalha de ouro para distinção e prémio concedido ao mérito, filantropia e generosidade, em virtude do socorro aos náufragos do vapor francês, em 1880. Já em 1898, por decreto de 24 de Novembro, foi-lhe concedida uma medalha de prata para distinção e prémio concedido ao mérito, filantropia e generosidade, como forma de reconhecimento pela coragem demonstrada no episódio ocorrido em 1898.
Outra homenagem aconteceu em Lisboa, mais concretamente no Teatro S. Carlos, na festa dos Lobos-do-Mar, promovida pela Diário de Notícias – em data não especificada em nenhum dos documentos a que o PÚBLICO teve acesso. Nessa sessão, “Cunha e Costa tomou para tema da sua conferência a vida do Arrais Ançã, expondo à assembleia todos [seus] os actos generosos e filantrópicos” e, “de tal modo os expôs que o Ex.mo Presidente da República, António José de Almeida, chamou ao camarote o velho pescador e, ante a comoção de toda a gente, abraçou o beijou o Arrais Ançã”, relatou O Ilhavense, aquando da morte do herói ilhavense. O Estado acabaria, também, e após uma petição feita por um grupo de ilhavenses, por lhe conceder uma pensão de sobrevivência – o problema é que, por vezes, atrasaria a ser paga, causando alguns transtornos ao velho lobo-do-mar.
Era um homem humilde, e também “sem cultura”, conforme notou Guilhermino Ramalheira, mas teve admiradores de peso, personalidades da elite local, e era recebido, com frequência, em vivendas abastadas da região. João Teodoro Pinto Basto, antigo administrador delegado da Vista Alegre, “num período cruciante em que Ançã passou dificuldades sem conta, recebia-o no Palácio da Vista Alegre e aí o tratava com todo carinho”, relatou o professor e jornalista ilhavense. Também o “conselheiro Luís de Magalhães foi um dos maiores amigos de Ançã” e recebia-o, com frequência, na sua “vivenda fidalga” da Costa Nova, acrescentou. Prova desta admiração que os mais ilustres tinham para com o velho lobo-do-mar foi, também, o facto de Alberto Souto, advogado e antigo deputado da nação, ter intercedido junto da Presidência da República a solicitar que a pensão do herói fosse aumentada “como era justo e necessário”. “Peço eu que amparem e protejam […] o homem que tanto mereceu da Pátria e da Humanidade e que acaba de se despedir de mim com as lágrimas nos olhos, magoado do abandono e da ingratidão dos homens na sua honrada velhice”, escrevia Alberto Souto, num telegrama enviado nas vésperas do Natal de 1920.
Saudades do mar na hora da morte
Gabriel Ançã morreu pouco depois de celebrar 85 anos, a 23 de Fevereiro de 1930. Quase na hora da partida, o homem destemido, não terá conseguido conter as lágrimas, segundo testemunhou David Rocha, poeta ilhavense. “Perguntei ao gigante moribundo por que motivo chorava e ainda pude escutar esta resposta que nunca mais esqueci: ‘Já não volto a ver o mar’”, recordou o poeta – depoimento reproduzido, em 1962, por Guilhermino Ramalheira. A notícia da sua morte ultrapassou as fronteiras da sua terra e da sua região. “O Diário de Notícias e O Século publicaram, na primeira página, o retrato do glorioso ilhavense, acompanhando-o de notas impressionantes sobre a sua vida”, reparou O Ilhavense, na sua edição de 2 de Março de 1930.
Poucos anos depois da sua morte, em 1933, na Costa Nova, onde Gabriel Ançã passou a maior parte da sua vida, foi erguido um monumento em sua homenagem – o busto foi substituído por outro feito em bronze a 13 de Janeiro de 1996 e a calçada onde este se encontra também veio a ser baptizada com o seu nome. Símbolo de coragem e de altruísmo, Gabriel Ançã é, também, lembrado numa das salas do Museu Marítimo de Ílhavo. Ainda assim, muitos desconhecerão – especialmente as gerações mais novas – quem foi, de facto, este ilhavense destemido.
Nos anos mais recentes, os seus feitos e história de vida só voltaram a vir à tona através da pena do escritor ilhavense Senos da Fonseca, que dedica um capítulo ao arrais no seu livro Costa-Nova-do-Prado/200 Anos de História e Tradição (2009). “Era uma figura ímpar, de muita coragem, um desafiador e um pouco travesso”, recorda o autor, lembrando algumas das expressões que ficaram na memória de quem conviveu com o arrais. Como aquela que terá pronunciado, aos seus homens, durante o perigoso episódio 11 de Outubro de 1898: “Eh! Seus maricas. Danados! Vá, remem e deitem essas lágrimas pró vertedoiro para eu as beber quando tiver sede”, reproduz Senos da Fonseca, no seu livro. O autor lamenta que o lobo-do-mar não seja mais vezes evocado, especialmente nestes tempos mais modernos. Tanto mais porque foi uma figura como muito poucas a quem o mar nunca meteu medo.