E se o tratamento do cancro de cada doente fosse testado num peixinho?

As larvas de peixe-zebra podem vir a ter grande importância na luta contra o cancro. Nelas, cientistas portugueses simularam a resposta à quimioterapia de cinco doentes e dizem que podem ser modelos de previsão dessa resposta.

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Larva do peixe-zebra com massa tumoral (a alaranjado) oriunda de um doente Rita Fior

Tal como cada pessoa, cada cancro é único. Por isso, a mesma quimioterapia pode resultar num doente mas não ser eficaz noutro. E se fosse possível prever o desfecho do tratamento para cada caso? Já estivemos mais longe desse cenário: um grupo de cientistas portugueses mostrou que as larvas do peixe-zebra podem vir a ser um modelo para prever antecipadamente a resposta dos cancros às quimioterapias existentes.

O trabalho publicado esta segunda-feira na revista Proceedings of the National Academy of Sciences nasceu a partir de dois cientistas (ao qual se juntaram outros investigadores, clínicos e patologistas): Rita Fior, que estuda os peixes-zebra, e é investigadora da Fundação Champalimaud e primeira autora do estudo; e Miguel Godinho Ferreira, que investiga a evolução dos tumores, e é cientista da Fundação Champalimaud e do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) e que coordenou o trabalho.

“Ficava frustrada quando pensava que temos tecnologia para pôr uma pessoa na Lua, mas não sabemos qual é o melhor fármaco a usar contra o tumor”, diz Rita Fior, num comunicado da Fundação Champalimaud.

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Os investigadores Rita Fior e Miguel Godinho Ferreira DR

Um cancro pode ser muito heterogéneo e evolui com o tempo, o que leva a que a quimioterapia não seja eficaz contra todas as células tumorais. “Nalguns casos, a taxa de eficácia das quimioterapias pode ser baixa, por vezes rondando os 35%. Isto quer dizer que alguns doentes oncológicos correm o risco de tomar medicamentos inadequados e que os enfraquecem, e sem um teste não há forma de saber quem irá beneficiar”, frisa Miguel Godinho Ferreira no comunicado.

O investigador refere-se a testes personalizados, em que se transplantam células do cancro humano para um animal e se simula aí o que ocorre no corpo do doente. Nalguns grandes hospitais ou centros oncológicos fazem-se estes testes com ratinhos. Só que o tumor demora vários meses a crescer nos ratinhos. Pode haver outra opção, até já referida noutros estudos: os peixes-zebra. “São mais pequenos e podemos fazer testes com vários peixinhos logo de uma vez. Assim fazemos o ensaio numa semana e temos mais uma semana para analisar os resultados”, explica-nos Rita Fior.

Para isso, seria preciso transplantar células cancerosas humanas para larvas do peixes-zebra (que não chegam a ter um centímetro), para que se reproduzir o que acontecia nos doentes, tornando-as assim uma espécie de avatares.

O estudo começou em 2013 no IGC. Um ano depois, passou para o Centro Champalimaud, onde há um centro clínico em cancro. Aliás, o laboratório onde trabalhavam estava mesmo ao lado do serviço de anatomia patológica desse centro, onde se analisam as biópsias aos doentes. Tinham ainda acesso à farmácia do hospital (onde os restos das quimioterapias são descartados). Isto permitiu a Rita Fior transplantar para as larvas do peixe-zebra fragmentos dos cancros das pessoas e usar nas larvas a mesma quimioterapia que era feita aos doentes.

Os cientistas perceberam então que bastavam pequenas diferenças entre os cancros para que fossem necessários medicamentos diferentes para o tratamento. E ainda viram que uma única mutação no gene RAS (muitas vezes alterado nos tumores) podia ser suficiente para que a resposta ao tratamento fosse outra.

Por fim, transplantaram para peixes-zebra massas tumorais de cinco doentes com cancro colo-rectal (uma das principais causas de morte por cancro em todo o mundo) do centro clínico Champalimaud e do Hospital Amadora-Sintra. Esses doentes foram operados e depois fizeram quimioterapia. Depois, os cientistas submeteram os peixes (os tais avatares dos doentes) à mesma quimioterapia e compararam a resposta dos peixes e a dos doentes.

Triplo negativo em testes

“Em dois conjuntos de avatares não vimos resposta à quimioterapia e esses doentes, passados seis meses, já estavam com recidiva. Não vimos resposta à quimioterapia, ou seja, parecia que as células não eram sensíveis a ela. O facto de os pacientes voltarem a ter o tumor confirma que aquela droga não estava a ser eficiente”, explica a investigadora. Já outros dois doentes, em que os avatares responderam ao tratamento, ficaram bem e não tiveram uma recaída.

No quinto caso, não houve resposta nas larvas, mas o doente ficou bem. Rita Fior acrescenta que, ao contrário dos outros casos, este doente tinha sido tratado com quimioterapia muito agressiva antes da cirurgia. “Não sabemos se terá alguma coisa a ver com isso.”

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Larva do peixe-zebra com massa tumoral (a alaranjado) oriunda de um doente Rita Fior

Concluindo, o teste nas larvas do peixe-zebra funcionou em quatro dos cinco casos. “No geral, os nossos resultados sugerem que o xenotransplante [transplante de órgãos entre diferentes espécies] nas larvas do peixes-zebra constitui um exame rápido promissor para a medicina de precisão”, lê-se ainda no artigo científico.

“Para mim, a melhor forma de explicar o que estamos a fazer tem a ver com a analogia com o antibiograma”, refere Miguel Godinho Ferreira. “O estamos a fazer é tentar reproduzir o que já existe para as infecções bacterianas.” Quando se chega a um hospital com uma infecção, através da cultura da bactéria, analisa-se essa bactéria e todos os antibióticos aos quais é sensível. “Isto era o que gostaríamos muito que acontecesse para o tratamento oncológico.”

Mas esta investigação ainda vai no início. “Só depois de um estudo com centenas de pacientes poderemos saber que o que estamos a ver nos peixes é, efectivamente, o que está a acontecer com as pessoas”, destaca Miguel Godinho Ferreira.

O novo passo deste estudo clínico já começou e os resultados ainda vão demorar cerca de dois anos. Rita Fior adianta que já estão a fazer ensaios preliminares nas larvas do peixe-zebra para o cancro da mama, nomeadamente o tipo triplo negativo (as células cancerosas não apresentam à superfície nenhum de três receptores habituais do cancro da mama para os estrogénios, a progesterona e a herceptina). Como é um cancro que não responde às terapias hormonais habituais é difícil de tratar e é letal. E o mesmo irá fazer-se para o cancro do pâncreas (um dos mais letais) e, talvez ainda, para a leucemia aguda. “Não sei se vai funcionar em todos os tipos de cancro”, acautela. Mas o sonho de usar o peixe-zebra desta forma mantém-se: “Daqui a uns tempos, se tudo correr bem, vai ser um auxiliar para os médicos escolherem o tratamento que tem maior probabilidade de funcionar numa pessoa.”

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