E todos os olhares se concentraram neste novo Benjamin Clementine

Com Ty Segall, Lightning Bolt ou Foxygen, a despedida do 25.º Paredes de Coura foi particularmente fértil em bons momentos. Mas nenhum deixará maior marca que o concerto memorável de Benjamin Clementine.

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Edição com número redondo exigia festa em grande. E, se isso era o mínimo exigível na despedida do Vodafone Paredes de Coura, foi precisamente isso que Paredes de Coura preparou. Houve direito a parabéns cantados do alto de um guindaste montado ao lado do palco principal, houve confetti e bolas insufláveis gigantes lançadas sobre a multidão que, parabéns cantados, dançou All my friends, dos LCD Soundsystem, um clássico de uma das bandas que fez a história do festival.

Aconteceu no final do concerto dos ingleses Foals, ou seja, depois de tudo o resto de um dia muito preenchido: Ty Segall, Lightning Bolt, Alex Cameron, Manuel Cruz, Foxygen, White Haus. E, claro, Benjamin Clementine, o músico que todos esperavam e que assinou um concerto memorável no dia em que o festival registou a sua maior enchente de sempre, quase 28 mil pessoas. A festa acabou no palco Vodafone.FM ao som de um dos DJ já da casa, Nuno Lopes, o actor que também dá dança à população, e, no que a concertos diz respeito, com uns Throes + The Shine que parecem cada vez mais senhores da linguagem musical que inventaram no Porto e que vêm preenchendo de tanta África e de tantas cores quantas as necessárias para dizerem com propriedade, como disseram, “Hoje é festa!”.

Horas antes, fora irresistível o rock’n’roll de Ty Segall, justamente promovido ao palco principal do festival depois das presenças anteriores no secundário – o californiano e sua banda são máquina oleadíssima, dona e senhora do fuzz e do piano eléctrico, mestre no riff Black Sabbath transformado em glória garageira e tiveram com eles um público em tumulto feliz. Tumultuosa também a gloriosa presença dos Lightning Bolt de Brian Chippendale, o baterista líder de máscara no rosto, e Brian Gibson, o baixista que transforma um baixo num detonador de groove distorcido. São mais de 20 anos a fazer caminho como uma das bandas mais singulares e marcantes do noise-rock e as suas actuações sem rede ganharam um estatuto mítico que foi confirmado no palco Vodafone.FM – ninguém sai ileso daquele ataque visceral em velocidade supersónica.

Quando se começou a sentir a ventania do furacão Lightning Bolt, ainda parte do público tentava com tímidas vaias que aquilo que presenciara na hora anterior se prolongasse um pouco mais. Benjamin Clementine acabara de abandonar o palco, mas não regressaria para encore. Não era necessário que o fizesse para que o concerto a que assistíramos se transformasse num dos grandes momentos do festival.

Dono de uma voz de assombrosa expressividade, o que é potenciado pela sua presença em palco, imponente no corpo esguio e altíssimo sobre o piano, olhos cerrados enquanto a voz se ergue, olhos bem abertos, postos em quem o observa para comunicar com uma proximidade que, não há muito, se julgava impossível. Não era ele o cantor irremediavelmente tímido que, quando primeiro o vimos, se expunha em canções que eram desarmante retrato da intimidade? Era, mas deixou de o ser.

Vinte e sete mil em coro

Durante uma hora, Benjamin Clementine foi esse que víramos antes, cantando sozinho Adios, a da despedida, enquanto a banda o observava no canto do palco. Durante uma hora, levantou o véu sobre o álbum que editará em Setembro, I Tell a Fly, poderoso e ambicioso comentário à Europa que hoje habitamos, repleta de muros e ódios. “By the boats of Europe/ everyone’s a’ coming”, apresentou-se, músicos vestindo fato-macaco azul, coro totalmente de branco. A sua nova música é feita de ecos distantes – o coro que nos faz recuar à Antiguidade, o cravo de ressonância barroca –, e faz-se drama performativo em palco.

Num momento o piano sonha o romantismo tocante de Debussy, no momento seguinte aterramos na tensão fantasmagórica de God save the jungle, uma das novas canções. O público, suspenso em cada movimento e sílaba cantada, atento ao novo que recebia, seguiria depois, palavra a palavra, cada um dos versos de Nemesis ou Condolence, da estreia At Least for Now. O público cantou enquanto Benjamin Clementine se calava para ouvir os seus versos entoados por um coro imenso. E ele mesmo se levantaria para o conduzir, quando todas as luzes se apagaram e o homem em palco ficou a sós com 27 mil. Pediu que todos os olhos se cerrassem, que nas mentes de todos passassem as “imagens atrozes que temos visto na televisão nos últimos dias”, que se exorcizassem todos os demónios: “I’m sending my condolence to fear/ I’m sending my condolence to insecurity.”

Benjamin Clementine tem uns meros 28 anos, mas surge perante nós como alguém que carrega em si muito mais vida vivida. A música que apresenta agora parece denunciar isso mesmo, pela complexidade e cunho dramático. A música que fez antes também já o demonstrava, mas pela profundidade emocional que revelava. Em Paredes de Coura, público rendido desde o primeiro momento, músico agradecido pelo “amor e pela gentileza”, tivemos essas duas realidades comunicando entre si. Do "Billy, the bully" de Aleppoville – Benjamin cantor-actor na boca do palco, “wonderings are never ending/ oh, a bomb!” –, ao “It’s a wonderful life/ traversed in tears from the heavens” de I won’t complain, vimo-lo completar-se: o olhar interior a tornar-se visão global. Rendido, o público seguiu-o (devoto?) em cada movimento. Agradecido (comovido?), Benjamin Clementine sorriu, fez uma vénia e despediu-se, saindo do palco em passos demorados.

Tanto para ver

Na despedida de Paredes de Coura, assistimos ao regresso de Manel Cruz ao local do crime, depois do histórico concerto dos Ornatos Violeta, em 2012, e foi bonito ter tanto público reunido para cantar as canções deste reinventor da tradição, carregadas dos versos de vida bem observada que fazem o seu catálogo a solo. Neste dia, o público ouviu os White Haus de João Vieira à tarde como se fosse horas de after-hours, e acompanhou esse cantor performer chamado Alex Cameron que ocupa o palco como um Nick Cave à solta em Um Coração Selvagem, de Lynch.

Não exageramos quando dizemos que o último dia do Vodafone Paredes de Coura foi preenchidíssimo. Tanto para ver, tanto que se viu. Ao início da madrugada, os britânicos Foals a encerraram o palco principal, perante o entusiasmo da multidão com aquilo que, no início do século XXI, se convencionou baptizar com termo muito mais antigo – indie-rock. Ao crepúsculo, vimos essa banda delírio chamada Foxygen, liderada por Sam France, qual ode à extravagância decadente, de chapéu de aba na cabeça e purpurinas nas maçãs do rosto. Hang, o último álbum é uma viagem vertiginosa à América enquanto terra de sonhos perdidos e de ambições desmedidas (imaginadas às quatro da manhã num cabaret perdido no mapa). O concerto é esse álbum tornado vida perante nós.

Acompanhados de secção de metais, clownescos – “são todos tão bonitos aqui, deviam estar num filme de Hollywood” –, fizeram de um concerto rock um espectáculo de vaudeville dado ao surrealismo. “Feliz Natal, Porto!” (cuidado com erros na geografia), gritou. Anunciava America, canção festa, canção farsa, canção sátira de um sonho desencantado. Não pareceria à primeira vista, mas há algo que une estes espalha-brasas todos ele excesso e o Benjamin Clementine que concentrou em si todos os olhares. Apesar da música, do processo, da atitude, serem completamente diferentes, ambos lançam o seu olhar único sobre o mundo que habitam.

É dessa diversidade de sons, de olhares, de música que se faz o Vodafone Paredes de Coura. Vinte e cinco edições depois, já sabemos muito bem que assim é. Esperemos que assim continue a ser.

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