O emigrante que andou a dar dinheiro de mão em mão
Angariou 22 mil euros na Alemanha e veio para Pedrogão dá-lo às vítimas que mais precisavam. A maioria foi para idosos, os poucos que ainda vivem nos lugares perdidos nas serras.
No dia em que viu pela televisão a sua terra em chamas, as casas ardidas e os muitos compatriotas que perderam tudo ou quase tudo, o pedroguense Manuel Teixeira, emigrante há 31 anos em Dortmund, na Alemanha não hesitou. “Disse para mim próprio: ‘tenho de ajudar a minha gente’.”
Organizou, na cidade onde trabalha, uma gala de música solidária para emigrantes na Alemanha, em que participaram também cidadãos locais, com o objectivo de recolher dinheiro para ajudar as vítimas dos incêndios. Na gala que teve lugar em Julho, anunciou de imediato que o dinheiro seria dado “em mão às pessoas que mais necessitassem”.
Recolheu, na gala e com outros donativos, um total de 22 mil euros. Há quatro semanas veio de férias para Pedrogão e cumpriu o prometido. Pediu ao padre de Pedrogão para o ajudar a encontrar os mais necessitados e passou as férias de aldeia em aldeia, de lugar em lugar, a dar dinheiro a quem mais precisava.
Assegura ter ajudado mais de 70 famílias. A verba mais baixa que deu foi de 100 euros, a mais elevada 800. Dinheiro para medicamentos, para pequenas obras urgentes, para utensílios agrícolas. Registou e documentou todas as verbas oferecidas, os nomes dos beneficiados e ao que se destinou o dinheiro. Dia 19 deste mês, quando regressar a Dortmund, vai disponibilizar a quem estiver interessado toda a documentação para que quem lhe confiou a verba “saiba a quem ajudou e para o que serviu”.
Além desta tarefa, este soldador de 53 anos ajudou a distribuir alimentos pelos afectados, ajudou em pequenas obras e organizou ao fim da tarde de terça-feira, na freguesia de Vila Facaia, uma gala musical solidária chamada “renascer com o fado”. O objectivo: “Tentar confortar todos os corações que, de uma forma ou de outra, ficaram destroçados com as trágicas vítimas do fatídico incêndio de 17 de Junho, que enlutou todos.”
Estiveram presentes mais de 100 pedroguenses que quase encheram o largo principal de Vila Facaia. No final foram distribuídas diversas árvores de fruto que vão ser plantadas no concelho. Antes dos fados, Manuel Teixeira ainda passou, pelo lugar de Casal de Além, para entregar um tractor a um homem que tinha perdido todas as ferramentas agrícolas nos fogos. O dinheiro foi conseguido num peditório já feito durantes as férias em Pedrogão.
A opção por entregar o dinheiro em mão “não foi feita por falta de confiança nas instituições” públicas ou privadas que, “de alguma forma estão a ajudar as vítimas”, diz Manuel Teixeira. A opção ficou a dever-se ao facto de “as pessoas estarem mais disponíveis para ajudar se souberem que o seu dinheiro é, de facto, entregue a quem mais precisa”.
“Foram as melhores férias da minha vida. Regresso à Alemanha com o coração e a alma cheia”, diz.
O emigrante afirma existir ainda “muita dor em todo o lado”, de “gente que perdeu tudo”, uma grande parte de idosos “que vivem isolados e viram as suas hortas e culturas destruídas perdendo todo o sustento”. Pede que esta gente “não seja esquecida” porque “não tem ninguém que os ampare”.
O PÚBLICO passou por diversos desses lugares de Pedrogão, cercados pela destruição total da floresta e onde arderam parcial ou totalmente 230 habitações nos incêndios de Junho. Até ao momento foram reparadas quatro casas e dez têm trabalhos em execução, segundo revelou ao PÚBLICO um funcionário do gabinete de apoio ao presidente da Câmara de Pedrogão.
São lugares pequenos, onde em muitos deles não se vê ninguém ou quase ninguém, mesmo em meados de Agosto, tempo de férias. Gente que partiu para trabalhar para o estrangeiro, ou para as grandes cidades. Ficaram, em muitos casos, apenas os mais velhos.
No Outão, no centro do concelho, onde arderam por ali perto duas fábricas e algumas casas no centro do lugarejo há pouco mais de duas dezenas de habitações. Ao final da manhã de terça-feira apenas se viam por ali duas mulheres e uma criança. Maria José, 75 anos, tem por estes dias a companha da neta adolescente que por ali passa parte das férias escolares. Guilherma Santos, 80 anos, está sozinha. Ambas têm as famílias a trabalhar e viver em Lisboa.
Perderam as hortas, as árvores de fruto, as videiras. Guilhermina viu ainda uma das suas casas no lugar ser consumida pelo fogo. “Não foi a casa principal, mas era uma casa boa, cheia de móveis e de coisas boas”, afirma. “Isto só não ardeu tudo porque na altura estavam cá, de férias, os meus filhos e netos. Se não fossem eles, isto tinha sido tudo comido pelo fogo. O incêndio foi no sábado e os bombeiros só apareceram no domingo já isto estava quase tudo queimadinho”, acrescenta Maria José.
Ambas lembram os onze mortos em Nodeirinho, que por ali fica perto e por onde o PÚBLICO passou sem encontrar na manhã de terça-feira vivalma. Apontam também para o lugar da Senhora da Piedade, a cerca de 500 metros do Outão, “onde morreu atropelada uma mulher quando fugia do fogo”. “Foram dar com ela morta na valeta. Quem a matou nunca apareceu e nem a deram como vítima do fogo porque foi atropelada”, conta Maria José.
Dizem que no primeiro mês a seguir ao incêndio, houve muita ajuda alimentar para quem precisava, “mas agora já vem pouco”. “Em alguns casos as pessoas que precisam têm de ir buscar a ajuda fora do lugar onde vivem. Alguns não se conseguem deslocar e outros têm vergonha de pedir. “Quem distribui a ajuda devia andar por aí todos os dias a apoiar quem precisa”, acrescenta.
Ambas têm pouca esperança de recuperar algum dinheiro pelo que perderam. Já se deslocaram à Junta de Freguesia da Graça “para preencher a papelada” onde revelaram as perdas. “Já passaram quase dois meses e até agora nem uma palavra. Não aparecem nem dizem nada”, assegura Guilhermina.
Maria quase não a deixa acabar a frase. “A gente só ouve falar em milhões para Pedrogão. É dinheiro às carradas. Na gala da música das televisões eram milhões, mas o dinheiro vai todo para os papões. Para nós cruzes na boca”, afirma fazendo um cruz na boca com o polegar da mão direita.
Guilhermina diz que “devia haver alguém a dizer todos os dias onde está a ser gasto o dinheiro que as pessoas deram para Pedrogão”, acrescenta agora já indignada.
À entrada do lugar de Escalos Fundeiros, zona onde se admite que tenham começado os fogos, um cartaz sobre uma mesa anuncia: “Podem levar, tudo funciona”. Na mesa repousam três máquinas eléctricas de café embrulhadas em plásticos e um conjunto para fondue, ainda dentro da caixa de cartão original.
Também por ali não se vê ninguém e apenas o cão que ladra quebra o silêncio. “Cala-te”, ouve-se. Maria da Conceição, de 81 anos, está sentada à sombra do alpendre a amanhar couves que há-de juntar farinha para dar às galinhas. “Isto aqui parecia uma bomba. Eram labaredas por todo o lado. Felizmente não morreu ninguém aqui, mas ainda arderam algumas casas. Era labaredas por todos os lado, mais altas que as árvores mais altas. Só não ardeu tudo porque apareceram quatro bombeiros espanhóis que ajudaram a salvar as casas e alguns animais”, conta.
Foi graças a eles, acrescenta, que conseguiu salvar, “duas cabras, cinco galinhas, três gatos e o cão”, que diz ser a sua “única companhia”.
Maria, solteira, vive sozinha “há muitos anos”. Diz que a maioria das pessoas já partiu do lugar “há muito” e hoje “aparecem pouco.”. “Só ficaram velhos espalhados por aí”.
Também ela viu o fogo levar-lhes as hortas e árvores de fruto. “Perdi as couves, as alfaces, batatas, videiras e as árvores. Só se salvou a casa, o resto foi tudo.”
O que lhe tem valido, assegura, é “pessoal da ajuda” que lhe leva comida, para ela e para os animais. “É gente muito boa. Ainda hoje me vieram dar uma saca de farinha para os animais” Quanto à possibilidade de reclamar algum dinheiro pelo que perdeu, diz não saber como o fazer. “Já passou aqui um senhor da agricultura que apontou o que perdi, mas ainda não disseram nada.”
Quando já se despede dos jornalistas, ainda revela: “O fogo ainda veio atrás de mim, mas não fugi. Salvei-me eu e o meu cão. Nasci aqui e hei-de morrer aqui, mas não é já.”