Na floresta negra de Pedrógão a natureza já está a fazer a sua parte

Junto ao solo calcinado os fetos renasceram. Os eucaliptos mostram rebentos verdes. O corte dos pinheiros mortos começou. A regeneração natural avança, mas falta ainda um plano que junte o Estado e os privados para que a floresta que está nascer seja ordenada e resistente ao fogo.

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Sérgio Azenha
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Na orla do itinerário principal que atravessa o Pinhal Interior Norte vê-se um enorme cartaz branco escrito com letras verdes com uma mensagem de gratidão e outra de esperança: “Obrigado Povo Português. Vamos Renascer”. Dois meses depois do incêndio devastador, Pedrógão Grande começa aos poucos a trocar as memórias dolorosas do fogo pela expectativa do futuro que está para vir. A maior tragédia de sempre na floresta nacional devorou 10 mil dos 12800 hectares de povoamentos do concelho, e se sobram incertezas sobre o envolvimento do Estado na reconstrução da floresta, os proprietários de Pedrógão Grande e dos concelhos vizinhos sabem já que vão ter um precioso auxílio na sua ambição de “renascer”: a regeneração natural.

No fundo de um pequeno vale a curta distância da sede de concelho, Escalos Fundeiros ostenta a triste condição de berço do incêndio. É uma aldeia pequena, de ruas estreitas, de gente idosa e suficientemente experiente para se ter apercebido que aquele fogo não era como os outros. As chamas que num ápice subiram a encosta e arrasaram as plantações de pinheiros e eucaliptos, deixaram Escalos Fundeiros entalada numa paisagem desolada e escura. Mas, quando nos aproximamos, é possível notar que na base dos eucaliptos calcinados há novos rebentos de um verde que fica ainda mais fulgurante em contraste com a escuridão da terra. Nos espaços com um pouco mais de luz, fetos com dois palmos de altura aumentam a certeza de que o renascimento da floresta de Pedrógão está mesmo a começar.

Uma vez mais, a natureza dá o seu contributo, mas o papel que os proprietários e as autoridades florestais nacionais vão desempenhar é ainda incerto. Depois do incêndio, o presidente da Câmara de Pedrógão, Valdemar Alves, pediu ao Governo um “projecto-piloto” para que se pudesse conjugar a regeneração natural com as boas práticas da gestão florestal. Do lado do Governo, há a promessa de um pedido de financiamento de 100 milhões ao Plano Juncker para a gestão florestal e 58 milhões de euros para a rearborização, mas não se sabe quando esse projecto vai ser apresentado e se será aprovado – o PÚBLICO não conseguiu falar com o novo secretário de Estado das Florestas, Miguel Freitas. Mas Valdemar Alves não desiste. “Não podemos andar a dizer uma coisa e depois fazer outra”.  

 “Temos uma enorme oportunidade para aproveitar a regeneração natural e conseguir algum ordenamento”, diz Tânia Ferreira, técnica da Aflor, a associação de produtores florestais da zona. Depois de ter vivido intensamente o drama de Junho, Tânia não consegue tirar férias. A sua principal tarefa, por agora, é apresentar um projecto para a recuperação dos caminhos florestais e das infra-estruturas no terreno, que pode custar 2,8 milhões de euros. O que vier a seguir, diz Tânia, tem de obedecer aos modelos que a ciência há muito prescreve: evitar longos blocos de monocultura, criar zonas de corta-fogos e, insiste a técnica, “plantar folhosas numa zona de protecção com 100 metros em torno das aldeias”. Será que os proprietários aceitam essa mudança? “Sem dúvida. O que aconteceu deixou-os muito sensibilizados” para o perigo de ter eucaliptos ou pinheiros ao pé da porta.  

Saber como é que essa floresta modelar vai ser feita é, para já, um mistério. A regeneração natural do eucalipto vai, regra geral, fazer com que cada árvore morta dê lugar a uma árvore nova. O eucalipto liberta semente, mas essa semente “é pequenina, tem reservas limitadas e é por isso menos resistente do que a semente do pinheiro”, explica Patrícia Fernandes, bióloga e autora de uma tese de doutoramento dedicada à regeneração natural do pinheiro e do eucalipto. Nesta espécie, a regeneração natural faz-se pelo “rebentamento por toiça” – novos rebentos emergem da raiz que alimentou as árvores agora calcinadas. Pelo contrário, o pinheiro reproduz-se por sementes que podem ser transportadas pelo vento até 150 metros. O seu potencial de regeneração natural é muito mais abundante. As suas sementes e as árvores jovens sobrevivem em solos pobres e com pouca água – um cenário que os solos calcificados e nus da área ardida vai acentuar.  

No caso do eucalipto, uma plantação com três ou quatro anos é capaz de sobreviver ao fogo e “rebentar por toiça”. No pinhal, a exigência é maior. Por um lado, a libertação de semente “só acontece quando há pinheiros sãos e já com alguma idade”, nota João Soares, silvicultor, ex-secretário de Estado da Floresta e durante anos director da área florestal da Portucel – hoje Navigator. Depois, quando a intensidade do fogo é muito grande, “há o risco de a semente morrer”, diz Patrícia Fernandes. Entre 1995 e 2010 desapareceram no país 263 mil hectares de pinhal, em muitos casos porque os incêndios foram violentos ou porque destruíram árvores demasiado jovens para produzir semente. A maior parte desta área (165 mil hectares) é hoje ocupada por “matos e pastagens”, de acordo com o último inventário florestal nacional.

A limpeza já começou

Para que todo este cenário da regeneração e de posterior ordenamento possa acontecer, há uma missão urgente a fazer: retirar as árvores mortas. A operação já começou e em força. Nas margens do IC8, camiões protegidos pela GNR carregam toros calcinados. No silêncio dos montes, é possível ouvir o ronco das motosserras provenientes de várias direcções. Centenas de homens e dezenas de camiões correm contra o tempo. “Se não tirarmos os pinheiros dos montes antes da chuva”, diz José Ferreira, um madeireiro do concelho, “a madeira começa a ‘azular’, estraga-se e já não dá para a serração, só para estilha”. Uma tonelada de pinho para a serração vale hoje cerca de 42 euros; se for para estilha usada na indústria de aglomerados ou de pellets, vale metade ou menos.

Retirar as árvores mortas da floresta é uma operação obrigatória para os produtores florestais. Os troncos que começam a apodrecer tornam-se uma reserva de pragas para os novos povoamentos. E, mantendo-se no lugar, as árvores mortas impedem que se façam operações de ordenamento quando os pinheiros ou eucaliptos chegarem aos quatro ou cinco anos de idade. No concelho de Mação, onde os incêndios dos últimos 15 anos devoraram uma área correspondente a 120% do concelho (quer dizer que houve áreas que arderam várias vezes), há uma experiência que mostra como aproveitar a regeneração natural para criar pinhais ordenados. Uma vez que a dispersão de sementes é muito abundante, deixam-se crescer todas as árvores para depois se rasgarem “entrelinhas” com tractores e roçadeiras. Assim, a floresta fica limpa de matos, os pinheiros acabam alinhados e as operações silvícolas são mais fáceis de executar.

O corte de pinheiros queimados na zona de Pedrógão está a correr bem porque há mercado. “Não se nota uma grande desvalorização do preço da madeira e há até empresas como a Sonae [proprietária do PÚBLICO] que estão a pagar ao mesmo preço da madeira em verde”, diz Tânia Ferreira. José Ferreira é um pouco menos optimista: “o preço caiu oito euros”, diz, ou seja, cerca de 20% face aos valores antes do incêndio. Mas, ainda assim, ele e os seus três funcionários não têm mãos a medir. O fogo destruiu-lhe um camião, um tractor e outro equipamento, mas José tem sido capaz de manter o negócio vivo, alugando as máquinas ou os transportes que lhe faltam. “Tenho de manter o emprego para os meus trabalhadores e para mim”, diz.

José tem enviado a madeira que corta na zona ardida para a Pinhoser, uma serração gigante na Sertã. O problema é saber se tanta abundância de madeira pode continuar a ser absorvida pela indústria. Há serrações que deixaram de receber pinho por falta de capacidade de transformação. Para já, diz José, “ainda tenho trabalho para mais um ano e meio”.

E é assim porque depois de acabar de retirar o pinheiro, virá a vez do eucalipto. Com esta madeira, o prazo para o abate de árvores mortas é maior. “Vamos precisar de chuva para ser mais fácil tirar a casca”, explica José Ferreira. Mas quando esse momento chegar, o trabalho de preparação da madeira para as fábricas de pasta e de papel será muito mais difícil e delicado. “A madeira não pode ter uma ponta de carvão, tem de estar completamente limpa”, diz José Soares. Porque se o carvão entra no processo industrial, é impossível branquear a pasta. Mesmo que os preços se mantenham, o custo de preparação será sempre maior. Em casos de plantações com pouco volume de madeira (e o mesmo acontece com os pinhais jovens), é possível que os produtores desistam de limpar os seus terrenos com árvores mortas.

É neste ponto da equação que o envelhecimento e a demografia ameaçam o futuro. José Ferreira tem 63 anos e custa-lhe aproveitar os apoios do Estado para a reposição do equipamento destruído “porque eles exigem que eu compre tudo novo, o que implica muito investimento”. Com duas filhas fora (uma em Aveiro, outra em Faro), o empresário faz contas à vida.

“As pessoas daqui têm demonstrado uma enorme capacidade para reagirem às dificuldades”, nota António Cunha, professor em Carcavelos que comprou uma casa em Escalos Fundeiros onde costuma passar férias de Verão, mas o desafio para a criação de uma nova floresta é gigantesco. A associação florestal, que reúne 944 produtores com uma média de três hectares, lançou uma operação para cadastrar cerca de 1500 hectares de plantações de duas ZIF (Zona de Intervenção Florestal) e tenta desenhar acções colectivas. Mas, por vezes, “é difícil explicar-lhes o que é a gestão conjunta”, diz Tânia Ferreira.

No caso das indústrias da madeira e das famílias que dependem ou da produção ou da intermediação, há um outro obstáculo a enfrentar. Quando os povoamentos queimados forem retirados, no concelho de Pedrógão sobrarão apenas dois mil hectares para explorar. O que sobrar terá entrado no lento processo de crescimento que durará uma década – caso do eucalipto, já que um pinheiro adulto exige três ou quatro vezes mais tempo. Não haverá madeira para cortar. Os desafios para a economia local serão enormes. “Os empresários daqui vão ter de procurar madeira noutros lados”, concorda Tânia Ferreira.

Tanto como a longa espera, o medo da autarquia, dos produtores florestais e dos negociantes é que não se tenha aprendido nada com o desastre de Junho. “Esta é a melhor altura para se fazer uma coisa como deve ser, uma coisa diferente”, diz José Ferreira. A vontade de “renascer” garantida na orla do IC8 coincide com a ordem natural. Mas a construção de uma floresta nova, sustentável e resistente ao fogo, todos o sabem, exige bastante mais do que uma deliberação da vontade.

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