Há um atlas para descobrir as paisagens portuguesas que vêm nos livros
A base de dados do atlas reúne quase 7 mil excertos recolhidos por "leitores de paisagens literárias", em mais de 350 obras, de 170 escritores, do século XIX aos dias de hoje. Mas ainda "há tudo por fazer".
"Hoje à tarde, quando visitava as penedias do Sirol — uma maravilha que a erosão das águas ali fez — e pasmava diante de uma inacreditável fachada românica natural, o bandido de um moleiro, a quem perguntei se aquilo não lhe dizia nada lá por dentro, respondeu-me tal e qual:
— Para quem nunca viu pedras..."
Conhecemos os nossos arredores, acostumamo-nos à paisagem que vemos todos os dias. E caímos no erro do moleiro que Miguel Torga escreveu num dos volumes do Diário, na entrada Leiria, 25 de Novembro de 1940, que se encerra na cegueira do quotidiano e não consegue olhar à volta e apreciar os elementos naturais e culturais que lhe compõe o dia-a-dia. Falta-nos, muitas vezes, encontrar-lhes um "significado", diz Ana Isabel Queiroz, a investigadora que coordena um projecto de investigação que quis criar uma espécie de atlas que nos permite calcorrear Portugal de Norte a Sul, guiados por escritores que pararam para observar a paisagem e que depois a escreveram.
Nascido para "valorizar a literatura e o território", as palavras e as paisagens, o património natural e cultural, como “elementos-chave das identidades locais e regionais”, o Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental funciona como um repositório de excertos literários de obras do século XIX até à actualidade. São compilados e classificados numa imensa base de dados, construída a muitas mãos, que agrega descrições de paisagens e as georreferencia de maneira a que se possa viajar pelo território e pela literatura ao mesmo tempo.
De que forma é que a literatura pode contar a história de um lugar, de uma rua, de uma aldeia, de uma cidade? "A literatura, o texto, é uma representação daquele território e ao lê-lo através daquela descrição, estamos a conferir-lhe significado. Estamos a dar-lhe a profundidade histórica, social, política, económica, humana. Deixa de ser um espaço sem sentido para ser um espaço com significado", explica a investigadora ao PÚBLICO.
Vamos então para a sala de visitas da capital, a Praça do Comércio, guiados por Hans Christian Andersen em Uma Visita em Portugal em 1866 e seguimos pela "larga Rua do Ouro. Aí estão os ourives, em lojas umas atrás das outras, exibindo correntes de ouro, condecorações e outros esplendores. Por esta rua se vai à maior praça da cidade, a Praça do Comércio, que se prolonga até à margem pavimentada do Tejo, onde estão os barcos ancorados. Em ambos os lados se ergue a cidade em forma de terraços sobre colinas de considerável altura".
No atlas podemos ainda viajar para Norte para o Porto de Maria Angelina e Raul Brandão, em Portugal Pequenino, "se não a mais bela, a mais pitoresca" cidade do mundo. Pelo meio do "nevoeiro que sobe, ascende" e "atropela tudo", com aqueles “bairros à beira rio” que fazem “uma cidade de sonho”, subimos "aquelas ruas íngremes", como "a dos Clérigos, com um grande dedo apontado para o céu".
E damos um pulo a Trás-os-Montes, onde podemos adivinhar que ali vamos encontrar um famoso trasmontano que é a voz de uma terra e de um povo, Miguel Torga, ou à região vizinha, a que Camilo Castelo Branco dedicou as suas oito Novelas do Minho. E não podia faltar o contributo de Eça de Queirós que em A Cidade e as Serras um dia trouxe Jacinto da sempre frenética Paris à pacata aldeia de Tormes, no Douro, onde havia de chegar à "pequenina estação", que apareceu "clara e simples, à beira do rio, entre rochas, com os seus vistosos girassóis enchendo um jardinzinho breve, e duas altas figueiras assombreando o pátio, e por trás a serra coberta de velho e denso arvoredo".
Hoje, ainda desembarcam passageiros em Tormes, alguns em peregrinação literária à Casa-museu de Eça. Coisa dos tempos, esta peregrinação pode ser hoje feita sem sair de casa, através de uma aplicação, "que não funciona maravilhosamente", admite Ana, mas que nos permite percorrer Portugal (quase) de lés-a-lés, guiados por escritores, obras e temas ou saltando de concelho em concelho.
Sete anos depois do início deste projecto de investigação, desenvolvido em conjunto com o Instituto de Estudos de Literatura e Tradição da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, o Instituto de História Contemporânea, a Fabula Urbis e a Fundação Eça de Queiroz, são quase sete mil excertos recolhidos por investigadores e por outros “leitores de paisagens literárias”, depois da leitura de mais de 350 obras de mais de 170 escritores, do século XIX aos dias de hoje. Mas ainda “há tudo por fazer” num mapa que ainda tem muito país por preencher.
"Os lugares são como as pessoas, têm que amadurecer"
Já percebemos que Miguel Torga, Camilo Castelo Branco ou Eça de Queirós são alguns dos escritores clássicos presentes nos habituais roteiros literários. Mas, porque esta base de dados se vai fazendo "pelo gosto dos cidadãos", muitos dos autores escolhidos fogem ao rol dos clássicos, permitindo contar as histórias dos espaços a partir de outras vozes.
Até porque cada autor tem a sua própria "geografia literária". Por exemplo, de António Lobo Antunes, há 213 excertos na zona de Lisboa. "As obras que temos do Lobo Antunes desenham o seu mapa literário. Nota-se que está mais concentrado em Lisboa, mas tem uma geografia própria" que vai além do espaço físico e espelha uma realidade social, política, económica, uma vivência ora mais urbana, ora mais rural, explica Ana Isabel Queiroz. Por isso, quis estudar a evolução da paisagem lisboeta e acabou a estudar 35 romances, desde o século XIX até à actualidade, que retratam a capital.
"Olhámos para todos da mesma forma, como se aquelas obras fossem todas uma, não sobre as palavras que usaram, mas sobre o espaço da cidade de Lisboa que utilizaram. E concluímos que os escritores do século XIX não retrataram a cidade da mesma maneira que os escritores da actualidade. Claro que já estávamos à espera que isso acontecesse. Mas não sabíamos quais eram as diferenças”, explica.
Dividiram os livros em quatro períodos: Monarquia, I República, Estado Novo e Democracia. Cartografaram todos os pontos que estavam dentro do romance e uniram-nos. "Chamamos a isto o espaço literário do livro", diz. E perceberam que no período da Monarquia o espaço comum é muito concentrado no centro da cidade, nas zonas do Chiado e Rossio, na República expande-se do centro, no Estado Novo volta a concentrar-se e já em Democracia volta a ser mais alargado.
"Aquilo que é a representação que mais escritores fazem vai-se ampliando. A noção de cidade vai aumentando”, nota. O imaginário da cidade na Democracia já não está confinado a esta "cidadezinha do século XIX". Mas, ressalva, que "apesar de a cidade ter aumentado, a parte literária não acompanhou esse crescimento". Porquê?
Porque há "uma espécie de tempo de espera" até que um espaço entre na cidade. "Há algum escritor a escrever agora sobre a Alta de Lisboa? Ainda não, porque aquilo ainda é considerado um subúrbio, um arredor, ainda não há histórias". E os lugares também precisam de um tempo de vivência. "Os lugares são como as pessoas, têm que amadurecer".
"Não deixamos de ter escritores a escrever paisagens literárias"
Este projecto de investigação tem vivido da divulgação, diz Ana Isabel Queiroz. Por isso, as leituras têm vindo para a rua ter com os leitores em percursos literários que começaram em 2012, com o propósito de pôr a literatura e contar a história da cidade. O último roteiro literário foi centrado no coração de Lisboa – do Chiado ao Marquês de Pombal - para marcar a abertura da Feira do Livro, em Junho passado.
Começou no Largo do Barão de Quintela com um texto de João Bouza da Costa. Depois foi para o Chiado junto à Brasileira, onde se leu Salão Portugal: novos contos da velha Lisboa, de Vítor Serpa. Seguiu depois para o Rossio, recordado na literatura como "palco de grandes revoluções", lembram Alves Redol, em Os Reinegros, a propósito do 5 de Outubro de 1910 e Filomena Marona Beja em Bute Daí, Zé, que segue a vida de vários jovens no antes e depois do 25 de Abril. Passou para a Praça dos Restauradores, e a Avenida da Liberdade até à rotunda do Marquês de Pombal e terminou no parque Eduardo VII, de onde, "ao fundo", se vê "a estátua do Marquês com o leão de bronze pela trela" e, "mais para diante, desfilava a Avenida, cinemas, comércio, andaimes de anúncios luminosos encavalitados em telhados fim-de-século”, guiava José Cardoso Pires, em Alexandra Alpha.
No dia nacional da Cultura Científica, que se celebra a 24 de Novembro, o núcleo de investigação quer pôr os leitores a ler e a desenhar a paisagem consoante a descrição do Terreiro do Paço que vem nos livros. E que se estende “frente ao rio, onde os aleijados tocavam nas arcadas sambas de rabeca e a amplidão da água se abria a seguir aos degraus que descem para o mar e aos retroseiros e cavernas de ginjinha da Rua Augusta”, ironizava António Lobo Antunes em As Naus. Hoje, o espaço onde antes ancoravam barcos ancora turistas que se refastelam junto ao Cais das Colunas, da mesma forma que os comboios que param em Tormes são muito diferentes daquele que um dia trouxe Jacinto de Paris.
"É um projecto que não está morto. Estamos muito longe de ter isto terminado, mas está a andar. Não deixamos de ter escritores a escrever paisagens literárias”, diz Ana Isabel Queiroz. Por isso, quem encontrar excertos que descrevam pedaços deste “abençoado país [onde] todos os políticos têm ‘imenso talento’”, escrevia Eça em Os Maias, pode contactar os investigadores do projecto e ajudar a alargar o “imaginário literário português”.