“E agora, mãe, pai, deixem-me fazer um gap year”, pedia o então presidente da Associação de Estudantes da Escola Secundária do Carregal do Sal, mais para soltar da plateia as palmas e as gargalhadas que carimbam o sucesso de uma conferência do que numa súplica convicta para fazer uma pausa nos estudos e viajar pelo mundo.
A história sai-lhe mecânica como uma cassete tantas vezes repetida desde então. Mas ainda hoje não sabe por que razão foi aquele o tema escolhido à última hora para apresentar no evento organizado pela Fundação Lapa do Lobo. Sabe é que até o presidente da instituição, Carlos Cunha Torres, o desafiar a “passar da teoria à prática” e oferecer-se para pagar a viagem, tudo não passava de “uma ideia que achava engraçada”. De uma piada dita para finalizar em grande um desenrascanço. “Como já lhe disse uma vez, ele sonhou por mim”, confessa Gonçalo, director-executivo da Associação Gap Year Portugal (AGYP), que fundou mal regressou ao país. A organização sem fins lucrativos fará cinco anos a 29 de Outubro, confirmará nos estatutos a meio da conversa, quando as datas deixam de bater certo. “Andei este tempo todo a dizer três anos e meio, que engraçado. Perdi um bocado a noção do tempo”, admite Gonçalo, a dias de completar 24 anos.
A entrevista faz-se por vídeochamada. Gonçalo Azevedo Silva estava, então, em Banguecoque para um simpósio que tem como objectivo “preparar futuros líderes para questões humanitárias” — uma definição que, diz, “vale o que vale”. Neste momento, já estará pela Índia, numa viagem de regresso ao país onde, em 2012, nasceu a ideia de criar a associação. Desse momento lembra-se ao mais ínfimo pormenor. “Tinha acabado de falar ao telefone e estava de barriga para cima, debaixo da minha rede mosquiteira, quando, de repente, caiu-me a ficha”, recorda. “Percebi que estava tudo diferente comigo. As perspectivas sobre o meu futuro tinham mudado completamente.” Talvez por ter sido uma fundação a dar-lhe aquela oportunidade, sentiu que tinha “a responsabilidade de fazer o mesmo por todos os portugueses” que desejassem ter uma experiência semelhante. Naquele dia definiu as linhas orientadoras do projecto, começou a construir o site enquanto prosseguia o périplo com um amigo (a oferta da fundação vinha com “plus one”). Ao todo, visitaram 25 países — na Europa, Ásia e Oceânia — ao longo de oito meses (com um regresso a Portugal pelo meio).
O gap year rompeu por completo o trajecto de vida que tinha planeado. Os últimos anos foram passados a transformar o novo sonho numa associação com peso a nível nacional e o regresso ao percurso convencional — com a licenciatura em Economia — sucessivamente interrompido. Mas, para Gonçalo, mais do que uma curva inesperada na cronologia biográfica, a experiência trouxe crescimento pessoal e uma nova forma de encarar a vida. “O que mais mudou foi passar a acreditar que não há impossíveis.” E explica: “Quando estamos a viajar pelo mundo, a fazer tanta coisa diferente e a ser capaz de ultrapassar tantos problemas sozinhos, uma pessoa sente-se capaz de tudo.” É isso que procuram transmitir na associação, com acções de divulgação pelo país. Não se perde um ano, ganham-se competências importantes para o futuro: acreditar mais nas próprias capacidades, relacionar-se com os outros mais facilmente, ser mais rápido a resolver problemas ou pensar fora da caixa, enumera. Este ano, 400 jovens estão inscritos na associação para receber apoio na preparação das viagens. A equipa é formada por 52 voluntários.
Para os indecisos, aquela temporada a viajar é também um momento para reflectir sobre o caminho académico ou profissional a seguir, para encontrar aquilo que os move. Gonçalo só se apercebeu mais tarde, mas a paixão era antiga: “ter um impacto positivo na vida das pessoas”. “É por isso que gosto de estar na AGYP, gosto muito de política, de todas as vezes em que estive num movimento estudantil ou de ser monitor em colónias de férias”, enumera. Aos 15 anos, tornou-se presidente da Concelhia da Juventude Socialista de Carregal do Sal. Mais tarde, chegou a vice-presidente da federação de Viseu. E está a terminar o mandato como membro da assembleia municipal de Carregal do Sal. Em Outubro, contudo, não se recandidata. “Não fazia sentido, tendo em conta que nos próximos anos não estarei lá.”
Em Setembro, Gonçalo deixa oficialmente o cargo de director-executivo da Associação Gap Year Portugal e passa o testemunho a João Pedro Carvalho. Fica como presidente não-executivo. Por duas vezes parou o curso para se dedicar à organização. Agora quer regressar à universidade. E seguir em frente. “Sinto que já dei um grande pontapé de saída e que deixar [a presidência] também simboliza que houve algum sucesso naquilo que fizemos porque só sairia quando estivesse assegurada a sustentabilidade da associação.”
O regresso à Índia é, por isso, também o fim de um ciclo. “Foram muitos anos a incentivar pessoas a viajar e a ficar sempre no mesmo sítio.” Agora, Gonçalo volta a pôr a mochila às costas para percorrer o país que tem “a capacidade de nos surpreender todos os dias”. E reflectir, uma vez mais, sobre o futuro. Num caderno, leva “uma série de pontos para pensar”. Entre eles, “perceber o quer fazer a seguir a sério”. Certo é que tão cedo não quer fundar outra organização ou empresa — “o balanço é extremamente positivo e voltava a fazer tudo outra vez, mas não fazia uma segunda”. E que em meados de Setembro regressa aos bancos da Faculdade de Economia do Porto. Se tudo correr como esperado, acaba a licenciatura neste ano lectivo. “Estou entusiasmado com a possibilidade de ir às aulas sem adormecer e de me dedicar a tempo inteiro à faculdade. E de ter boas notas — que foi algo que até agora também não pude ter.”