Três milhões de euros para nos ensinar a conjugar o verbo descarbonizar
Doze cidades estão na lista final para um pacote de três milhões de euros, destinado a transformar espaços urbanos em demonstradores de um estilo de vida mais sustentável
Há quem nos esteja a convidar para um almoço num restaurante solar com vista para a baía do Seixal. Almada, por outro lado, até quer criar uma moeda com nome de um famoso molho romano, para bonificar comportamentos amigos do ambiente, e a Figueira quer capturar o CO2 de um edifício, alimentar com ele microalgas e dá-las de comer aos peixes. Já Matosinhos quer instalar uma casa que roda com o sol, para nos tentar dar a volta à cabeça. Com o objectivo é reduzir as emissões de dióxido de carbono nas cidades portuguesas, 35 delas participaram no concurso para a criação de zonas de experimentação de soluções sustentáveis. Doze passaram a uma segunda fase e, destas, as melhores terão acesso a três milhões de euros para pôr em prática a sua proposta.
O verbo, relativamente pouco usado ainda, é descarbonizar. Com as ambiciosas metas do Acordo de Paris em mente, o Governo anda a ver como vai o país cumprir o objectivo de chegar a 2050 com um balanço zero de carbono. E, perante a evidência de que 70% do CO2 que emitimos vem das cidades, qualquer mudança positiva alcançada em espaço urbano - onde as questões energéticas associadas à mobilidade e ao edificado têm um papel crucial nestas contas - será decisiva para o saldo final.
Mas, para isso, assume o secretário de Estado Adjunto e do Ambiente, José Mendes, é preciso fazer uma “metamorfose” nos nossos comportamentos quotidianos, o que vai, requer, nos próximos anos, investimentos avultados. Num primeiro momento, o executivo optou por lançar um concurso para a criação de seis a oito Laboratórios Vivos para a Descarbonização (LVpD) em áreas delimitadas de outras tantas cidades portuguesas de média dimensão. Na expectativa de que as soluções que ali sejam demonstradas acabem, com o tempo, por ser replicadas no resto do país.
Os doze finalistas
Dos 35 concelhos que participaram no concurso lançado no início do ano, doze propostas sobem agora a um segundo patamar, e vão ter direito a 80 mil euros cada uma para a elaboração de um plano de execução. Águeda, Alenquer, Almada, Barcelos, Braga, Évora, Figueira da Foz, Loulé, Mafra, Maia, Matosinhos e Seixal, os finalistas, têm de o entregar até Novembro. E, até ao final do ano, feita a avaliação destes documentos, o Fundo Ambiental, que lidera esta iniciativa do ministério, distribuirá entre eles três milhões de euros, sendo assumido, à partida, que os municípios envolvidos invistam outro tanto para criar estes laboratórios.
A cada concorrente foi pedido que, para além de propostas com impacto concreto na redução das emissões, o seu LVpD se distribuísse por um espaço delimitado, com alguma identidade local, a partir do qual quem lá viva, e a restante população do concelho que ali se dirija, possam, diariamente, dar de caras com soluções incentivadoras de uma mudança no seu estilo de vida consonante com esse objectivo da sustentabilidade. Todos se propõem experimentar tecnologias mais ou menos recentes, mais ou menos testadas no mercado. Mas, nota o secretário de Estado, o ponto fulcral do projecto são as pessoas. “Se tirarmos as pessoas à cidade e a desligarmos, ela não gera emissões”, assinala.
O programa do concurso, desenhado com recurso a uma equipa externa que trabalhou graciosamente para o Estado, nota José Mendes, pedia atenção a quatro áreas específicas. No caso da mobilidade, foi quase geral a proposta de criação de condições para o aumento da utilização de bicicletas eléctricas, quer pela disponibilização de equipamentos quer, por via das acções na área da energia, pela acessibilidade a pontos de carregamento. Algumas câmaras querem também fazer o sensoriamento do espaço público para criar sistemas de apoio ao estacionamento, mas os projectos mais ambiciosos, neste campo, talvez sejam o de Almada (centrado na rua da movida em Cacilhas) e de Évora (centro histórico), que pretendem atacar de frente os problemas decorrentes da circulação de cargas e descargas. Num e noutro caso, propõe a criação de espaços onde essa logística possa ser centralizada, libertando o espaço público e minimizando emissões.
No caso de Évora, essa revolução na logística acompanha medidas na área da energia, pois o edifício que o município pretende adaptar para essas funções será auto-suficiente e produzirá ainda energia para abastecer os veículos eléctricos que farão a ponta final do transporte de mercadorias para o comércio intra-muralhas. A adaptação energética de edificado, bem como da iluminação pública, está presente em praticamente todas as candidaturas, antevendo o apertar da legislação em termos de eficiência energética dos novos edifícios. No campo da iluminação pública, o Seixal, que apresenta uma das propostas globais mais ambiciosas, quer dar mais trabalho às luminárias de rua, acoplando-lhes contadores de água e luz, sensores de qualidade do ar, do ruído, do estacionamento, controladores de rega e pontos de carga de veículos eléctricos.
No campo da economia circular e do Ambiente, as propostas dos doze finalistas estão muito centradas, no primeiro caso, na melhoria da gestão dos resíduos e dos fluxos de reciclagem. E neste campo, a Maia, que já está avançada na experimentação de um sistema-piloto de tarifas variáveis de recolha de lixo em função do que é produzido pelos cidadãos, vai insistir nesta fórmula usada noutros países mas que tarda em ser disseminada em Portugal. Braga vai também testar o sistema PAYT (do inglês, “Pay as you throw”), enquanto Almada vai usar uma nova moeda, o Garum, para premiar comportamentos positivos e permitir, por exemplo, a compra de bilhetes de transporte público com garuns. Na Figueira, as microalgas vão ser usadas para capturar CO2 emitido por edifícios e servirão, depois, para alimentar peixe em aquacultura.
É geral também a vontade de colocar sensores nos espaços públicos onde se desenvolverão os laboratórios para aferir a qualidade do ar e outros parâmetros, como o ruído. A Maia, que tem a ambição de vir a ser a primeira cidade neutra em carbono, quer proibir totalmente a circulação de veículos privados em alguns dias programados, na zona do Parque Central, envolvente à câmara - e mostrar aos cidadãos, em dispositivos na rua ou a partir da plataforma online de apoio ao projecto o impacto, na vida urbana, dessa opção. O sensoriamento visa ainda, noutros casos, a gestão eficiente da água, sendo que Águeda e Loulé (que quer fazer o laboratório numa zona da Quarteira) pretendem experimentar soluções para minimizar o risco de cheias.
Seixal teve a melhor classificação
Numa quarta área de trabalho, a do envolvimento das populações - aquelas de quem depende a mudança para uma economia menos dependente do carbono - as propostas ficaram, no geral, aquém do desejado. Em muitas delas falta mesmo um plano de comunicação, e o secretário de Estado, José Mendes, assume que esta é uma lacuna que terá de ser resolvida nos planos de execução que terão agora de ser trabalhados até Novembro. O secretário de Estado Adjunto e do Ambiente nota que a comunicação é essencial para disseminar a percepção dos efeitos positivos da mudança de comportamentos no próprio território dos municípios envolvidos e, em sequência, no restante território nacional. E promete empenhar-se pessoalmente, em workshops a realizar nos próximos meses, para que sejam corrigidas estas e outras debilidades das candidaturas.
As propostas de Matosinhos para a participação dos cidadãos no seu projecto foram uma pedrada no charco. O laboratório desta cidade vai estar centrado no quarteirão em torno dos Paços do Concelho, inclui a instalação de uma casa solar, centro de experimentação, de demonstração, e de debate das soluções que vão ser postas em prática, mas o que melhor a distingue é mesmo a forma de atrair os matosinhenses para o tema. O município pretende transformar alguns dos cidadãos das instituições que vão trabalhar no projecto em líderes da alteração de comportamentos nas respectivas comunidades. Para isso, estes vão ser dotados com informação online produzida a partir da plataforma de gestão Mobi.e do CEIIA, um centro de engenharia experimentado na criação de soluções de mobilidade inteligente já testadas à escala global, em vários continentes e que está instalado na cidade.
O presidente da Câmara de Matosinhos, Eduardo Pinheiro, destaca a importância desta parceria com o CEIIA para a componente de monitorização do impacto das medidas propostas no laboratório e que incluem a instalação de um sistema de bicicletas eléctricas partilhadas. “A tecnologia não é um fim, mas sempre um meio”, nota o autarca, assumindo alguma repulsa pela expressão Smart Cities, que por vezes, diz não passa de uma justificação para vender “apps”.
A tecnologia como meio está presente em todas as candidaturas e a mais bem classificada, a do Seixal, assume o desígnio de fazer do espaço do laboratório uma montra para as empresas mostrarem os seus produtos mais amigos do ambiente. A autarquia comunista assume, aliás, que espera financiar uma boa parte dos seus compromissos com este projecto com essa participação de privados.
A proposta desse concelho da margem Sul, que fugiu da linha ao propor uma área que abrange toda a baía do Seixal, ao longo de quatro quilómetros, quer pôr a circular aqui um comboio movido a energia eléctrica que o próprio produzirá. O vereador do Ambiente, Joaquim Tavares, explica que esta será uma forma de minimizar as deslocações pendulares em viatura própria e de incrementar o turismo na zona. Que terá outro atractivo no restaurante solar que é também proposto. Porque, acredita-se, também pela boca se podem mudar os comportamentos.
O Seixal tem como parceiro privilegiado o Politécnico de Setúbal e o sistema universitário e politécnico surge bem representado na globalidade das candidaturas, que recorrem, nalguns casos também, a empresas portuguesas para o fornecimento de alguns dos serviços e produtos a testar. O país tem já constituído o Cluster Smart Cities Portugal e em linha com as declarações do autarca do Seixal, José Mendes acredita que os laboratórios podem ser uma catapulta para o desenvolvimento de um sector centrado na oferta de soluções que ajudem a economia global a cumprir as metas ambientais, ao dar-lhes espaço, e visibilidade.
As empresas são no entanto uma peça de um jogo cujo resultado depende muito da capacidade de os decisores políticos integrarem nas suas propostas objectivos locais para o cumprimento das metas a que o país se comprometeu e, por outro lado, dos cidadãos. Num país onde vê demasiadas ciclovias sem ciclistas, José Mendes acredita que o motor da mudança não vai a construção de mais infraestrutura mas sim a alteração comportamental. Um aspecto que, em paralelo com investimentos mais visíveis, terá de ser trabalhado, ao longo das próximas décadas, nas escolas, em linha com o preconizado na nova Estratégia Nacional de Educação Ambiental.