O Bons Sons “não é o festival na aldeia, a aldeia é que é o festival”
É David “num campeonato de Golias”, o “melhor festival de todos”, o evento que mudou Cem Soldos durante o ano inteiro. No sábado, o Bons Sons teve uma triunfante Né Ladeiras e música em todos os cantos.
A dúvida vem do banco corrido em frente à casa de Ana Maria. “Mais gente? Ah, não é para a minha… na minha já não cabe mais ninguém”, diz a cemsoldense de 57 anos perante a visão de um grupo de jovens acabado de chegar com malas. A casa de Ana Maria está por conta do Bons Sons, que termina na segunda-feira: há quatro hóspedes e um quintal transformado em restaurante de carnes grelhadas. O quintal é presença obrigatória no festival e nas festas da aldeia. “Aquilo já não é meu, dizem eles. Desde que não me estraguem as flores…”, brinca.
São 19h15 de sábado, e o festival da aldeia de Cem Soldos, no concelho de Tomar, prepara-se para a segunda noite da sua 11.ª edição. No coreto que recebeu o nome de Michel Giacometti para se tornar palco do Bons Sons, as Señoritas convocam adufe, baixo, guitarra e alguma electrónica para fazer pop-rock descarnado, que põe o enfoque nas palavras cantadas por Mitó Mendes. À frente delas, centenas de pessoas entoam um sinistro refrão: “Viver bem/ Sempre nova/ Com os pés prà cova”. No final, o duo recuperou Amanhã, dos Sitiados, onde militou Sandra Baptista, a outra señorita – João Aguardela, que dá nome a um palco do Bons Sons, sorriria perante a visão de uma aldeia à volta da música portuguesa.
Duas horas antes, Mitó e Sandra cantaram da janela do número 217, uma aparição surpresa, com vozes e adufe, presenciada por poucas pessoas; à mesma hora, Filipe Sambado, com impecável camisa verde e batom da mesma cor, mostrava as suas canções no coreto. No Bons Sons, a música, sempre portuguesa, pode aparecer em qualquer sítio. Pelas 15h00, duas dezenas de pessoas fugiam do sol – os termómetros marcavam 38º, cenário amaciado pelas bisnagas de água que muitos disparavam –, enquanto um grupo de rapazes se dedicava a enfiar letras de Smash Mouth e Capitão Fausto num rock tosco e improvisado: na Garagem, qualquer um pode pegar num instrumento e fazer uma banda. Na igreja, o povo senta-se nos bancos para ouvir Filipe Valentim levar o saxofone, ora quase calado, ora furioso, a lugares novos.
“É o melhor festival de todos”, defende Tiago Pereira, mentor do projecto A Música Portuguesa a Gostar dela Própria (MPAGDP). No Bons Sons, este arquivo online de vídeos com músicos encontrou, há cinco anos, um palco – a Igreja de São Sebastião – para receber música tão diferente como a ponte entre o popular e o erudito dos Singularlugar e os jovens Lucía Vives e João Raposo.
O “melhor festival de todos”? Tiago argumenta: “Se a aldeia não quiser, não há festival. Cedem as casas para as pessoas dormirem.” À frente dele, está o altar da igreja – o palco onde Filipe Valentim tocou acabou de ser desmontado porque domingo é dia de missa, uma prova de que “não é o festival na aldeia, a aldeia é que é o festival”. A vida em Cem Soldos continua e, por isso, a folk muito pop dos Les Saint Armand, com o desembaraço rítmico do jazz, tem de conviver com os sinos da igreja que está por trás deles. E ninguém se importa.
Uma aldeia a crescer
Está visto que Cem Soldos e Bons Sons, posto de pé por 400 voluntários, a maioria moradores da aldeia, se confundem. “Basta dizer Cem Soldos em qualquer lado do país que associam logo ao Bons Sons”, acredita Paula Marques, de 45 anos, moradora que “ajuda nas caixas” registadoras. Nos últimos anos, Paula viu a aldeia de mil habitantes crescer durante o período do festival (em 2016 passaram por lá 32 mil pessoas), mas também no resto do ano. “Duplicámos o número de crianças na escola. Temos duas turmas, há três anos tínhamos só uma. Vamos ter mais duas turmas no jardim-de-infância”, revela o director artístico do festival, Luís Ferreira, que também pode ser avistado a transportar mesas. “Tem tudo a ver com recriação de comunidade, espírito de pertença e o querer fazer parte disto. O festival é a ponta do icebergue de um projecto enorme, que é o Cem Soldos Aldeia Cultura”, que vai de um projecto educativo especial à reabilitação de casas de idosos.
No meio disto tudo, o Bons Sons é o “projecto embaixador”, que “cria brio”, um festival que se quer pequeno porque isso é essencial para “atingir os objectivos”. “Somos voluntários, uma equipa comunitária de uma aldeia, estamos num campeonato de Golias, sendo David”, diz Luís Ferreira. “Não queremos crescer a nível de escala, queremos crescer a nível de discurso, de pertinência, de notoriedade, porque isso é importante para os projectos sociais que o Bons Sons, de alguma forma, sustenta.” E conclui: “Para viver bem a aldeia e o conceito que queremos apresentar, mais do que 10 mil pessoas por dia não interessa. O que queremos é duplicar os motivos para se vir a Cem Soldos durante o ano todo.”
A escala pode ser pequena, se comparada com outros festivais, mas não para Cem Soldos. “Já tinhas visto a aldeia com tanto movimento? Até parece Paris!”, ouvimos junto a uma banca de bebidas. Antónia Cartaxo, 56 anos, dona do Café da Tonita, onde se vende o refrescante e 100% tomarense “Mouchão”, agradece o movimento: “Toda a gente faz negócio. Torna-se engraçado, ganham-se amizades, as pessoas [de fora] vêm-nos cumprimentar.”
A vitória de Né Ladeiras
No palco Lopes Graça, a noite chegou com os Medeiros/Lucas e as suas baladas de navegantes, apresentadas a 80 quilómetros do mar. Carlos Medeiros, o diseur cada vez mais cantor de voz grave, e Pedro Lucas, cuja guitarra vai de Paredes aos mistérios dos westerns e à mais pura liberdade rock, inventaram uma música que nasce nos Açores, mas abraça o mundo. Não estiveram sozinhos: tiveram percussão expansiva, teclados com carta-branca para a fuga, e Mitó Mendes, que cantou Búzio e Fado do regresso.
No mesmo palco, Né Ladeiras haveria de dar outro mergulho na tradição portuguesa, de novo entreposto para outras viagens. Visitou a sua carreira a solo – entre os Trás-os-Montes, “pátria espiritual”, de Cirigoça, febre de adufes, e as visões médio-orientais de Flecha – e a Banda do Casaco. Com pouca ou nenhuma electricidade, Ai se a Luzia, Salve maravilha e Estranha força, da histórica banda (“Fez-me ver a música com liberdade”, contou), confirmaram-se monstros folk, tantos anos depois. No Bons Sons, a voz e presença de Né Ladeiras, que tem andado longe do grande público, impuseram-se. “Importam-se que eu tenha 58 anos?”, perguntou. Claro que não: houve palmas, muitas, e até crowd surfing, aclamação popular de velhos e novos que Né Ladeiras pediu que fosse reencaminhada aos organizadores de festivais que a ignoram. “Esta noite é para nunca mais esquecer na minha vida. Fogo, não tenho palavras!”
Antes, no mais espaçoso palco Eira, os Mão Morta levaram o povo da aldeia pelas cidades que inspiram as canções sanguíneas do clássico Mutantes S.21. O espectáculo, que assinala 25 anos desse disco fundamental, é uma oportunidade para ouvir canções nunca interpretadas ao vivo, como Marraquexe, que mostrou um Adolfo Luxúria Canibal tão alucinadamente expressivo como em 1992, e Istambul, algures entre os Sonic Youth e a música árabe (imagina-se uma cidade sufocada pelo calor enquanto três histórias culminam num grito, sacado às entranhas do vocalista). No fundo do palco surgem ilustrações trabalhadas digitalmente por João Martinho Moura, um “trabalho hipertecnológico” impossível há 25 anos. “Tentámos ao máximo fugir a esse exercício de nostalgia, não só pela maneira como tocamos, mas também pela forma como criamos um espectáculo que não é só a passagem do Mutantes S.21 de fio a pavio”, explicou ao PÚBLICO Adolfo Luxúria Canibal.
O vocalista da banda de Braga vê no Bons Sons uma inversão do “conceito geral” dos grandes eventos de música, que “querem transformar o festival numa espécie de ‘aldeia’ ou ‘cidade do rock’. Aqui é exactamente o contrário: partem do genuíno e transformam o genuíno num festival.”
A noite de concertos de sábado só acabaria quando os Throes + The Shine deixaram o palco Eira, depois de uma hora em que levantaram pó, invadiram a plateia e fizeram dançar com uma música que rouba ao kuduro o frenesim rítmico e ao rock a agressão. São um caso sério de popularidade e eficácia em palco, neste e noutros países. Não saíram dali enquanto não puseram dezenas de festivaleiros a abraçar-se: o espírito do festival materializou-se.