Omeletes sem ovos. Réplica a dois sábios
A História tem também, ou sobretudo, quem a estuda e quem a escreve. O que não deve ter é quem fala de cor.
1. O economista Nuno Teles admite que nunca leu nada do que eu escrevi na minha actividade de historiador, apenas três artigos meus no PÚBLICO. Apesar disso arrisca uma pequena omelete sem ovos e não se coíbe de fazer considerações sobre as minhas interpretações históricas — de que, como é óbvio, ignora a solidez — nem receia afirmar, como quem acusa um pecador, que eu sou “famoso internacionalmente por defender a irrelevância, senão mesmo o efeito negativo das revoltas de escravos no abolicionismo”.
Eu penso, de facto, que a abolição da escravidão partiu e ficou essencialmente a cargo do Ocidente — sobretudo da Grã-Bretanha. Houve sempre quem procurasse diminuir o mérito das políticas abolicionistas, quem dissesse que a decisão de abolir tinha tido motivos económicos puramente egoístas. É uma forma simplista de olhar as coisas, mas isso seria assunto para outro artigo. Aqui, estou mais preocupado com a teoria, ultimamente em moda e de que Nuno Teles se fez eco, segundo a qual teriam sido os escravos revoltosos que, através da sua luta, teriam chegado à abolição da escravidão ou forçado os países coloniais a decretá-la.
O objectivo dessa teoria é o de atribuir um papel activo e, mais que isso, decisivo, às massas escravas na história da sua própria libertação. Percebe-se a intenção, marcadamente política, mas, excepção feita ao caso particular do Haiti — que já veremos —, essa teoria não é confirmada pelos factos. Aliás, as grandes revoltas de escravos foram menos frequentes do que se diz.
Nos 350 anos que vão desde o início do tráfico atlântico até à época do abolicionismo e da Revolução Francesa, houve nove revoltas dessas em todo o mundo colonial. Porém, elas não visavam acabar com a escravidão. Visavam apenas — e é importante que isso seja sublinhado — a libertação dos revoltosos, que, uma vez livres, escravizavam (ou pretendiam escravizar) outras pessoas. Os escravos que controlaram, por momentos, uma parte da Guiana, ou os que formaram o grande quilombo de Palmares, mantiveram a escravidão, e há muitos exemplos análogos. Ou seja, os rebeldes e fugitivos adquiriam a liberdade para si mesmos, mas tinham ou podiam ter escravos — não eram antiescravistas. O mesmo já havia acontecido, aliás, com os escravos revoltosos na Roma antiga ou no califado Abássida. Ao contrário do que em geral se pensa, revolta escrava e antiescravismo não são necessariamente sinónimos.
Foi só com o aparecimento do abolicionismo que as coisas mudaram de figura. Aumentou, desde logo, o número de revoltas nas Américas — 20, nos 43 anos que se seguiram ao eclodir da Revolução Francesa — e algumas delas já reivindicavam o fim da escravidão. Como é óbvio, foram o abolicionismo e o fermento da revolução que estimularam as revoltas, dando a algumas delas novas metas, e não o inverso. Isso é evidente no caso inglês e, até, na colónia francesa de São Domingos (depois, Haiti), onde, em 1804, pela primeira e única vez na história, os escravos erradicaram a escravidão através da sua luta.
O exemplo do Haiti incentivou outros escravos a revoltarem-se. Todavia, essas revoltas foram facilmente esmagadas, como por norma acontecia, e não foi por essa via que se chegou à abolição da escravidão. Terá sido por via do medo que o risco de mais revoltas incutia nos países ocidentais? Importa dizer que, no Haiti, em 12 anos de confrontos no contexto da Revolução Francesa, da guerra contra inimigos exteriores e da revolta escrava, terão morrido 80 mil europeus e um número desconhecido mas certamente superior de negros. Esses factos provocaram horror nas sociedades escravocratas, mas tratou-se, como sempre, de um horror transitório.
A revolta do Haiti não impediu que os senhores continuassem a importar mais africanos e a praticar a escravidão. Ou seja, não foi o pavor de novos Haitis que levou à abolição em nenhum país ocidental. Essas abolições — incluindo a francesa que, após os ziguezagues da época revolucionária, só ocorreu em 1848 — foram decretadas pelos poderes políticos desses países e muito depois — cerca de 40 a 100 anos depois — da revolta de escravos haitiana. Não resultaram de rebeliões nem de medos, mas daquilo que, na época, Tocqueville designou por “iluminada vontade dos senhores”, isto é, a vontade de que a escravidão acabasse por razões de justiça, de humanidade, de boa política e, sobretudo, por haver a convicção de que o trabalho livre e remunerado seria mais produtivo que o trabalho escravo.
Por isso, quando ouvirem dizer que foram os escravos rebeldes que provocaram a abolição, peçam, por favor, que vos mostrem onde e quando, nos anos imediatamente anteriores às decisões de abolir, terá havido revoltas dessas em colónias portuguesas, espanholas, dinamarquesas, suecas, holandesas, nos Estados Unidos, no Chile, etc. Não as houve. Não porque os escravos, geralmente falando, não fossem corajosos, mas porque sabiam que, a menos que os brancos entrassem em divergências e guerras uns com os outros, a luta armada contra a escravidão estava votada ao insucesso, dada a superioridade de armamento dos senhores. E mesmo em casos de luta fratricida entre brancos, era duvidoso que as revoltas pudessem triunfar se outros factores não interviessem — como acontecera no Haiti.
Pense-se no caso norte-americano. Em plena guerra civil, Lincoln fez uma espécie de apelo aos escravos para se revoltarem, o que ajudaria o Norte. Mas os cerca de quatro milhões de escravos que então existiam no Sul não corresponderam ao apelo, ainda que o momento lhes fosse favorável pois o alistamento da população masculina e a sua partida para a frente de batalha reduzira a sociedade branca sulista a mulheres, crianças e velhos. Mesmo assim, não houve revolta. Isto não significa que os escravos tenham tido um comportamento passivo, pois muitos arriscaram as suas vidas na fuga para se juntarem às tropas nortistas. Mas a ausência de revoltas no período da Guerra da Secessão significa que a luta dos escravos pela liberdade foi feita num quadro regular, ao lado dos soldados brancos, e não num quadro insurreccional. O mesmo sucedeu em vários países da América Latina e até, em certos períodos, no próprio Haiti.
A escravidão, volto a afirmá-lo, não acabou devido a revoltas escravas, mas graças aos brancos e, também, aos negros que combateram a seu lado em organizações abolicionistas ou nos exércitos, de forma conjugada, cooperando uns com os outros para pôr fim ao flagelo. Eu sei que esta afirmação vai contra a corrente e que não é aceite pelos que, como Nuno Teles, se guiam pela historiografia de inspiração marxista. Remeto-os, então, para o debate entre historiadores no livro Who Abolished Slavery? (2010) e deixo-os não com as minhas afirmações nesse debate — sei que santos de casa não fazem milagres —, mas com as conclusões de David B. Davis, uma das maiores autoridades na matéria, e que é taxativo: “Se não tivesse havido o movimento abolicionista, os sistemas escravistas nas Américas não teriam acabado no século XIX.”
2. Paulo Pinto dedicou-me um novo texto que nada de relevante acrescenta ao anterior nem ao assunto. Fica-se novamente pela estratosfera das ideias genéricas, receoso de descer ao terreno — desta vez nem sequer usou a palavra escravatura, não fosse escaldar-se —, e lá do alto dessas generalidades diz-nos, como La Palice, que, em História, pode haver várias interpretações. Verdade. Há umas melhores, outras piores, dependendo da sua lógica interna e da solidez da fundamentação. Mas para haver interpretações é preciso conhecer os factos, os documentos, a bibliografia especializada, senão são, outra vez, omeletes sem ovos, mera ideologia e conversa de embalar.
O meu contraditor afirma que “a História não tem sentinelas nem guardiões, apenas observadores críticos”. É curto. A História tem também, ou sobretudo, quem a estuda e quem a escreve. O que não deve ter é quem fala de cor. Estará Paulo Pinto com vontade de propor interpretações diferentes das minhas? Se o está é bom que as apresente. Se não está, então talvez seja de mudar de rumo, não vá pensar-se que tem excesso de voluntarismo ou pior que isso. De qualquer modo, não fique em cuidado. As minhas interpretações sobre a história da escravatura foram e continuam a ser estudadas e escrutinadas, cá e lá fora. Passam pelo crivo da crítica, como é de boa norma. São sólidas. E as de Paulo Pinto? Existem? Poderemos lê-las?