O engenheiro da Google que perdeu o emprego ganhou a extrema-direita americana

Um ex-funcionário da empresa norte-americana defendeu que os homens estão mais preparados à nascença para trabalhar com computadores, e que é por isso que há poucas mulheres ao seu lado. Foi despedido e tornou-se num herói da alt-right.

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James Demore defende que os programas para reduzir a diferença na representatividade são "discriminatórios" Dado Ruvic/REUTERS

James Damore tem 28 anos e passou os últimos quatro como um discreto engenheiro na gigante Google – inteligente e bom naquilo que faz, mas ainda assim com um longo caminho à sua frente para chegar ao altar dos deuses da tecnologia. O problema é que esse caminho fechou-se esta semana, pelo menos na Google, quando James se afastou um pouco das linhas de código e dos servidores e fez uma incursão pelos mundos da biologia e da psicologia: foi despedido depois de ter escrito e partilhado as suas ideias sobre o que faz da engenharia tecnológica uma área tão pouco frequentada por mulheres, e por ter acusado os seus superiores de abrirem as portas a candidatos das minorias mesmo que eles não tenham as qualificações necessárias.

Num documento partilhado em Julho com vários colegas e grupos de trabalho no interior da empresa – a que chamou "A câmara de eco ideológica da Google" –, Damore tenta identificar e propor soluções para o que considera ser alguns dos maiores obstáculos que a Google enfrenta actualmente. Constata que há poucas mulheres a trabalhar nas empresas tecnológicas, em particular na engenharia; considera que Silicon Valley está dominado por ideias de esquerda, e que só por preconceito não aceita que há menos mulheres porque a biologia assim o determina; e acusa os responsáveis da Google de tentarem corrigir essa realidade com políticas e programas que prejudicam pessoas como ele próprio.

No final do parágrafo anterior, muitos leitores já terão tirado as suas conclusões – ou James Damore é um sexista e racista anti-igualdade de géneros, ou James Damore é uma vítima de uma alegada nova vaga do discurso politicamente correcto.

Nada pode substituir a leitura integral do texto escrito pelo antigo engenheiro da Google, mas é razoável afirmar neste texto que é mesmo esse o debate que se abriu nos Estados Unidos nos últimos dias: de um lado, os que acusam Damore de propagar teses sem base científica que ele atribui à chamada psicologia evolutiva; do outro, os que o transformaram num mártir da luta pela liberdade de expressão, principalmente depois de o CEO da Google, Sundar Pichai, ter decidido despedi-lo.

Na sua maioria, os que têm aproveitado os 15 minutos de fama de James Demore para reforçarem as acusações de que está em curso um ataque contra a liberdade de expressão fazem parte da chamada alt-right – um grupo não organizado de pessoas, na maioria com base nos EUA, mas com alguma expressão também no Canadá e na Europa, que defendem ideias xenófobas, racistas e sexistas. Nos EUA, os membros deste grupo defendem a ideia de que os americanos brancos são os americanos originais, e que são superiores a todos os outros.

Não é rigoroso afirmar que só os membros da alt-right estão ao lado de James Demore, nem que Demore se revê totalmente na alt-right, mas é óbvio que esse movimento tem usado todos os meios para agitar a bandeira do anti-politicamente correcto em nome do ex-engenheiro da Google.

"Um centrista"

As primeiras decisões que Demore tomou depois de ter sido despedido também não o ajudaram a afastar-se dessa direita racista e nativista, por onde navegam sites como o Breitbart (em tempos dirigido pelo actual principal estratega da Casa Branca, Stephen Bannon), e activistas nacionalistas como Jack Posobiec e Michael Cernovich. Depois de ter recusado ou adiado entrevistas aos principais jornais norte-americanos, Demore falou pela primeira vez em público sobre o seu despedimento da Google no canal do YouTube de Stefan Molyneaux, um canadiano que é considerado um dos filósofos da alt-right.

Durante essa conversa, que durou 45 minutos, Demore salientou várias vezes que não é racista nem sexista, e apresentou-se como um centrista – tal como diz no documento que pôs a circular no interior da Google, defende que as "ideias extremistas", tanto à esquerda como à direita, estão dominadas por preconceitos e pela ausência de dados científicos. Em alternativa, sugere que as contratações e a gestão do trabalho na Google devem ser guiadas pelas descobertas da ciência – neste caso, por factos que Demore considera terem sido comprovados pela psicologia evolutiva.

No texto que lhe valeu o despedimento, Demore usa uma linguagem pretensamente científica, repleta de citações de estudos e pontuada por ressalvas: "Eu valorizo a diversidade e a inclusão, não estou a negar que há sexismo e não concordo com o recurso a estereótipos", lê-se logo no início. E é isso que torna o texto de James Demore tão polarizador – sem as ressalvas de que é um centrista tolerante, poucos lhe dariam o benefício da dúvida; sem as ideias supostamente baseadas em ciência, ninguém se daria sequer ao trabalho de o ler.

"O facto de não termos 50% de representação de mulheres no sector da tecnologia e em cargos de liderança pode ser explicado, em parte, pelas diferenças nas distribuições de traços entre homens e mulheres" e "a discriminação com o objectivo de alcançar uma representatividade igual é injusta, divisiva e má para os negócios", escreveu Demore. Esses traços – segundo o ex-engenheiro da Google – estão presentes à nascença e separam homens e mulheres no acesso ao mercado de trabalho: as mulheres estão "mais receptivas aos sentimentos e à estética do que às ideias, e interessam-se mais por pessoas do que por coisas". E é por isso que as mulheres preferem trabalhar em áreas sociais e artísticas e os homens na engenharia, diz Demore – a partir das mesmas ideias, conclui também que há características biológicas que levam mais os homens para os cargos de liderança.

Como pano de fundo, Demore defende que os programas que a Google pôs em prática para reduzir a diferença na representatividade são "discriminatórios" e acabam por recompensar pessoas que não seriam contratadas noutra situação. E faz uma acusação que se tornou num dos principais argumentos usados pelos seus apoiantes para dizerem que o que está em causa é a liberdade de expressão: "A Google tem vários preconceitos e a discussão franca sobre esses preconceitos está a ser silenciada pela ideologia dominante" – que Demore considera ser amiga dos progressistas e inimiga dos conservadores como ele.

Assim que o texto de James Demore foi tornado público, as redes sociais encheram-se de indignação, ofensas, ameaças, vivas e piadas, como é normal nas redes sociais. Mas também foram muitos os especialistas que vieram ajudar a pôr alguma ordem na discussão – também como é normal nas redes sociais, sem muito sucesso entre quem fica com certezas absolutas logo que uma polémica estala.

Más interpretações

Um desses especialistas é Adam Grant, professor na Universidade da Pensilvânia e investigador na área da psicologia do trabalho. Para Grant, o texto de Demore apenas reflecte uma série de más interpretações e de erros em estudos científicos que depois passam a ser uma verdade inquestionável para uma parte da população.

"É sempre arriscado fazer alegações sobre de que forma metade da população é diferente da outra metade – especialmente em temas tão complicados como as capacidades técnicas e os interesses", escreveu Adam Grant, que baseou a sua resposta no cruzamento dos vários estudos. "Em 128 domínios da mente e do comportamento, 78% das diferenças de género são pequenas ou próximas do zero. Uma recente entrada nessa lista é a liderança, onde os homens se sentem mais confiantes, mas onde as mulheres são classificadas como mais competentes", diz o especialista.

Grant dá o exemplo da muito falada maior apetência dos rapazes do que as raparigas para a matemática, que não se confirma. Em quase 4000 estudos, “a diferença média de género no sucesso na matemática não é estatisticamente diferente de zero”. Mas os preconceitos contribuem para a percepção: “Quando os professores conhecem os nomes dos alunos, os rapazes têm melhores resultados do que as raparigas. Mas quando a atribuição de notas é feita de forma anónima, as raparigas têm melhores resultados nos testes de matemática.”

E estes preconceitos também afectam os homens, continua Adma Grant: “As mulheres são consideradas mais empáticas, e de facto têm melhores resultados do que os homens quando se testa a capacidade para ler os pensamentos e os sentimentos das outras pessoas. Mas se os testes não forem apresentados como um teste de empatia, a diferença entre géneros desaparece.”

A conclusão de Grant é a mesma a que chega a maioria dos críticos do antigo engenheiro da Google: sim, há diferenças, mas são tão pequenas na maioria das áreas que não chegam para habilitar mais um dos géneros para determinadas funções. Há muito mais engenheiros homens do que mulheres "porque as mulheres têm sido sistematicamente desencorajadas de trabalharem com computadores", diz o professor da Universidade da Pensilvânia. E dá um exemplo de como o argumento da diferença biológica aplicado às contratações de engenheiros pela Google é frágil: "Na Universidade Harvey Mudd, só 10% dos licenciados eram mulheres há uma década. Hoje em dia são 55%."

Mas de onde vem a ideia de que as diferenças biológicas entre homens e mulheres são assim tão vincadas que podem ser usadas como diferenciadoras quando se escolhe alguém para trabalhar com computadores? "Há uma mão cheia de áreas com diferenças acentuadas: os homens são fisicamente mais fortes e fisicamente mais agressivos, masturbam-se mais e vêm o sexo casual de forma mais positiva. Por isso, pode-se defender a necessidade de se ter mais homens do que mulheres, mas apenas se o objectivo for formar uma equipa de desporto ou recolher sémen."

"É tempo de deixarmos de exagerar", conclui Adam Grant. "Se os homens vêm de Marte, ao que parece as mulheres também."

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