Os comentários dos leitores
Que espécie de debate quer uma publicação online promover se serve tantas vezes de veículo à ofensa e quase sempre dá a palavra a quem não fala a mesma linguagem que o interlocutor?
Era uma bela utopia: abrir os sites dos jornais e revistas aos comentários dos leitores, promovendo assim o debate, a troca de argumentos, a socialização do saber, o ideal democrático de uma esfera pública alargada e cada vez mais esclarecida, conforme ao projecto moderno de uma sociedade transparente. Resultou, afinal, numa forma tenebrosa de obscurantismo e fomentou a exibição pública das reacções intelectualmente primárias e socialmente reprovadas, como são a injúria e a agressão.
Um especialista americano deste mundo digital perguntava há algum tempo na revista The Atlantic: “Quantos comentários devo eu ler, na Internet, para perder a fé na humanidade? Muitas vezes, a resposta é: um comentário”.
É hoje evidente que os comentários não trouxeram nada daquilo para que foram concebidos (este juízo refere-se ao efeito geral, a uma regra que tem as suas excepções de existência muito minoritária) e trabalham activamente para a ruína do edifício que se supunha que eles iriam ampliar e fortalecer. E também já se percebeu que uma pequena minoria consegue falsear a percepção de um artigo pelos seus leitores; transformar um jornalista, um colunista ou uma figura pública num pólo de atracção de ódios e admirações incondicionais. Mesmo nos sites de publicações culturalmente mais exigentes, os comentários raramente criam um verdadeiro debate, são antes ideias e opiniões sem relação umas com as outras.
Não quero dizer que a estupidez e a conversa desinteressante estão sempre do lado dos comentários e nunca do lado daquilo que eles comentam; mas a verdade é que o efeito dos comentários transborda para um espaço editorial mais alargado, não circunscrito à “caixa” onde são depositados. Por tudo isto, muitas publicações têm nos últimos tempos tomado a decisão de os fechar. Esse movimento está a crescer, há hoje uma discussão alargada sobre o que fazer com os comentários que, para além de terem efeitos perniciosos na esfera pública, são muitas vezes fontes de problemas jurídicos e de má imagem das publicações. Os jornais e revistas não podem reclamar a decência do jornalismo em oposição ao que eles consideram ser o bordel das “redes sociais”, integrando no entanto no seu espaço, como num conspícuo backroom, o que há de menos recomendável nelas.
Termino este texto com um apontamento nada abstracto. Há dias, tendo regressado a um destes meus textos (publicado em 28 de Abril, com o título “O Inferno, diz-vos algo?”), onde falava da seca no Alentejo e da visão ignorante e irresponsável da meteorologia que o homem urbano revela, li o comentário de um leitor que até assina com o nome de Liberal: “Este é um dos mais execráveis textos de António Guerreiro, porque baseado na mentira. Estive no Baixo Alentejo neste mês de Abril e vi aquilo que é normal para a época, um dia de Primavera com tudo ainda verdinho”. Ao leitor Liberal não lhe bastou arrastar o meu texto para o plano mais baixo da ordem moral, teve ainda que o desclassificar como uma “mentira” que, a partir de uma observação empírica, ele acha que deve denunciar. Recentemente, o IPMA informou que grande parte do território nacional (onde se inclui o Alentejo) está sob o efeito de uma “seca severa”. Porque sei muito bem o que é a seca no Alentejo, senti muitas vezes o medo que ela suscita e experimentei os prejuízos que provoca, estas palavras infames de um liberal cego pela ideologia encheram-me de indignação. Que espécie de debate quer uma publicação online promover se serve tantas vezes de veículo à ofensa e quase sempre dá a palavra a quem não fala a mesma linguagem que o interlocutor?