Artes: Estado e modalidades de apoio
As artes são longa aprendizagem e maturação, modos de viver interiores, não são surtos de energia pontuais.
Num artigo recente, tentei dizer que um sistema estatal de apoio às artes necessita de fundamentação ideal, filosófica, que o faça coincidir com a própria democracia, lhe injecte energia crítica constante promovendo a relação entre o debate que emerge das práticas artísticas e o acesso qualificado à criação e à literacia implícita aos seus modos de escrita e fruição. Tão importante é a qualificação dos fazeres quanto a dos “leres”. Não há ler alfabetizado sem uma consciência do fazer, processo por detrás do ler. Todos nós, leitores, somos sujeitos que ficcionam e os ficcionistas lêem ao criar. Ler é vital, saber ler, revestindo-se os modos de ler de muitas formas de ver e ouvir, de sentir e inteligir, de “ouver". Isso aprende-se praticando-se e conhece-se estudando e investigando em contextos culturais precisos, profissionais, específicos, em que se socialize, por virtude sistémica — é preciso que exista um “esquema” para que exista o que contra ele se erga, um sistema é sempre outro em potência — uma cultura — um teatro — “elitista para todos” (Vitez).
Falando das modalidades de apoio do decreto que a DGArtes promove, reconhecem-se três: apoio sustentado, parcerias e projectos. Estes com um quadro anual de concretização, os outros bianuais ou quadrienais. O que será determinante do seu êxito? Que os “sustentados” e os apoios de “parceria” sejam estruturantes, criem a igualdade de facto no acesso aos fazeres artísticos e aos modos de fruição. E que estimulem a libertação das energias artísticas numa dinâmica de interacção sensível, de pensamento e crítica, entre cena e sala, artistas e cidadãos. Igualdade de facto significa incidência orgânica sustentada, continuada e regular, prospectiva, emancipadora de lastros preconceituosos e provincianos, que seja profissionalmente artística — as artes são longa aprendizagem e maturação, modos de viver interiores, não são surtos de energia pontuais, nem voluntarismos amadores, exigem padrões de rigor assentes em critérios comparativos elevados, patrimoniais e civilizacionais, experimentais. Aqui, nem a visão patrimonial colhe como visão exclusiva, nem o experimentalismo performativo, são ambas formas unilaterais de acção — e o que tem acontecido é essa esquizofrenia, esse paralelismo de vivências propostas e mediatizadas, sinal de imaturidade cultural das nossas artes. Grave é, de facto, não ver que na relação entre clássicos e contemporâneos se projecta o melhor do que está para trás no que virá. Não se trata de manipulação, de marketing, de usos venais, da marca Shakespeare, trata-se mesmo do mundo Shakespeare, ou do mundo Vicente, do mundo Pessoa e não do Pessoa “nosso petróleo”.
Ao Estado incumbe dar expressão democrática, constituindo-se (a Constituição é um horizonte por vir e uma indicação prospectiva imperativa) a si mesmo como democracia cultural, incumbe realizar um ordenamento estruturado no território nacional das entidades de criação a partir das que existem e criando espaço para outras, combatendo todo o tipo de assimetrias e desigualdades, promovendo a cidadania e a qualidade das vidas comunitárias, a qualificação dos portugueses e a coesão social, mesmo se à arte cabe contraditar, dividir, combater estereótipos e preconceitos.
Para isso é necessário que as entidades sejam capazes de responder artisticamente de modo profissional — às equipas é essencial uma diversidade de competências identificada com a característica multidisciplinar e operacional das actividades de criação. Só o rigor que se depreende de uma alta formação dos elementos de uma equipa de criação e produção, de divulgação e circulação, de massa crítica implícita no saber disciplinar e técnico, artesanal e universitário, universal e especializado — como serão escrever, traduzir ou encenar, interpretar, como experiências “experimentais” —, mas também desenhar uma iluminação, escrever uma partitura, ou ter “mergulhado” nos isabelinos, em Vicente, Brecht e Beckett, ter sabido de Meyerhold, Brecht, Strehler e Brook, etc., permitirá que a dinâmica do trabalho artístico decorrente dos modos da sua socialização qualifique a democracia em vez de a preencher como formas de entretenimento — uma outra coisa, respeitável, claro. Criar é tentar o ainda inexistente transformando influências e referências para falar do real, dos reais, daquilo que os outros meios não falam ou sobre o que mentem, exibindo em excesso ou ocultando. Criar é uma busca da verdade.
Essa missão do Estado, continuando a reportar-me mais ao teatro, passa por compreender que Sector Público e Serviço Público — mesmo exercido por entidades privadas sem fins lucrativos — são faces da mesma necessidade de uma ordenação que liberte as potencialidades críticas do teatro, que o Serviço Público que não é Sector Público lhe é complementar, que os teatros nacionais, museus, bibliotecas, não esgotam esse ordenamento sectorial. O que implicará a “invenção” de uma realidade identificada com a multiplicidade disciplinar do teatro, materializando no país as estruturas necessárias ao desenvolvimento sustentado da arte, pressentidas e clarificadas as necessidades culturais — espirituais e laicas — das populações e artistas. Nem só de “mercado” vive o homem, “há mais vida para além da dívida”.
Isso faz-se, na perspectiva do século XXI, juntando como referência paradigmática às matrizes clássica e contemporânea, dramatúrgica e espectacular, arquitectónica, a história recente da encenação e a organização teatral europeia do pós-guerra, o centro dramático, formação e criação no mesmo corpo como aconteceu em Estrasburgo, TNS, Milão, Piccolo e Berlim, Berliner — e muitos outros exemplos. Isso significa, no caso português, projectos que:
1) Resolvam o nosso atraso estrutural relativamente aos modelos europeus vigentes — os exemplos alemão e francês com a multiplicidade dos teatros nacionais, municipais e locais (para além dos privados que fazem serviço público) existente são, para nós, uma referência. Não haja aqui a ilusão de que temos uma via nossa, baratinha obrigatoriamente, etc. Nossos são a língua e Gil Vicente, a inquisição e o buraco do teatro público nos 48 anos da ditadura. O que fizermos já em democracia necessita de se refundar, relançar, corrigindo desvios de voluntarismo e absurdos burocráticos, controlo e não estímulo. E, principalmente, corrigindo escalas e modelos organizativos — um centro de saúde não é um hospital, um laboratório não é uma chafarica de injecções, e cada hospital tem vocações específicas, o sistema vive de articulações de complementaridade;
2) Criem aquele conjunto de estruturas que resolvem teatralmente o território, regiões e pólos regionais, interior e litoral, centros urbanos e periferias;
3) Materializem a diversidade interdisciplinar de que se falou na diversidade dos modos de organização de cada entidade.
As estruturas tanto são Centros Dramáticos (formas organizativas do século XX, legado e laboratório na mesma organização, corpo técnico-administrativo, elenco mínimo/colectivo artístico, conhecimento dramatúrgico e espectacular, capacidades de transmissão dos saberes e poderes de conhecimento, etc., diferentes da companhia, forma antiga) como Centros de Escrita, como Centros de Estágios, como um Projecto Vicente, como entidades com vocação de digressão, Centros de Formação nas áreas técnicas, iluminação, cenografia, sonoplastia, criação musical para cena, etc. Todo um mundo que não existe na sua força e potencialidade.
Um todo é feito de partes e da articulação dinâmica que promovam em função de um ideal de organização superior ao que está — esta democracia nossa é precária — e que, no fundo, se tenta permanentemente atingir. O que seria a democracia se não se movesse pelo seu aperfeiçoamento constante?
Dizer que, entretanto, as regressões são reais e que o empobrecimento maior da democracia será a ditadura — ou mínimos “respiratórios” da sua existência com ela incompatíveis — é dizer algo que sentimos todos os dias na pele. E de um modo muito evidente, hoje, no meio da confusocracia gerada pela tragédia, instrumentalizada mediaticamente pelas televisões, dos incêndios. Que democracia têm sido estas semanas?