O passado de uma ilusão
Um estudo notável, e porventura definitivo, sobre a extrema-direita portuguesa entre 1976 e 1980.
“Mais vale sermos poucos, mas bons, do que muitos por contar”. Estas palavras, escritas por Manuel Maria Múrias nas páginas de A Rua, sintetizam de forma exemplar, ainda que involuntária, o que foram as extremas-direitas no período que vai das legislativas de 1976 até à vitória da Aliança Democrática e do general Eanes nas duas eleições de 1980, o arco temporal deste estudo de Riccardo Marchi, o mais profícuo e consistente investigador das direitas radicais portuguesas.
Na verdade, e como Manuel Múrias observou em 1980, as direitas radicais sempre se caracterizaram pela sua reduzida ou quase nula expressão. Terão sido “bons”, mas foram seguramente “poucos”; e, na hora de os contar, não eram os “muitos” que julgavam ser. Longe disso. Se exceptuarmos a votação-recorde do PDC em 1979, com 72.514 votos, correspondentes a 1,20% do eleitorado e o quarto lugar no círculo da emigração, um êxito conjuntural ditado pela reacção à aliança à esquerda do CDS com o PS em 1978, os resultados nas urnas da direita radical ou extrema estiveram sempre no limiar da irrelevância. Nas eleições de 1980, a coligação PDC-MIRN teve um resultado desastroso de 23.819 votos, correspondentes a 0,4% do eleitorado. Significará isto que o livro de Riccardo Marchi, um denso estudo de quase 500 páginas, se ocupou de uma realidade inexistente, de um não-assunto? De modo algum. O título do livro, A Direita Nunca Existiu, poderá ser enganador, mas corresponde ao amargo balanço feito por duas personalidades fulcrais dessa área política: em 1978, Eduardo Freitas da Costa concluía que “a direita política nunca existiu” e, em 1980, Manuel Maria Múrias reafirmava que “a direita deixou de existir ou mesmo nunca existiu”. Também no romance Novembro, de Jaime Nogueira Pinto, uma das personagens diz, a dado passo, que “não havia direita nenhuma. Nem sequer direitas. Havia aquelas personagens crónicas e aqueles movimentos ultras que se juntavam e zangavam periodicamente”.
Destas proclamações retóricas de “inexistência” da direita radical não pode, todavia, retirar-se uma conclusão quanto à sua insignificância histórica. Na verdade, a direita radical ou extraparlamentar desempenhou um papel determinante, quanto mais não seja a contrario sensu, na estruturação do sistema partidário português; sobretudo nas práticas e nos discursos, os partidos situados à direita do espectro parlamentar, com destaque para o CDS, mantiveram uma relação abertamente conflitual com todas — e foram muitas — as tentativas de afirmação de um espaço político de direita nacionalista ou ultraconservadora, capaz de cativar o voto dos abstencionistas que não se reviam no novo regime e, muito em especial, dos milhares de retornados do Ultramar. O CDS proclamava-se “centrista” e vivia no pavor, muito patente nas intervenções de Freitas do Amaral, de ser confundido com o legado do salazarismo ou do marcelismo. Está por determinar, e porventura nunca se chegará a saber ao certo, em que medida a existência destes grupúsculos de extrema-direita, que na altura pareceram ser uma ameaça ao CDS, não acabaram por beneficiá-lo, permitindo-lhe projectar-se como uma força política centrista, moderada, frequentável — sobretudo, distante do anterior regime, onde alguns dos seus membros, a começar pelo líder, tinham ocupado cargos públicos ou posições de destaque. Mas, estranhamente, essa circunstância não favoreceu o emergir de um pensamento e de uma prática política liberais, num tempo em que, importa lembrá-lo, até o PDC se proclamava “socialista” ou, melhor dizendo, defensor de um “socialismo cristão”.
A sombra de Salazar foi a condicionante maior da direita radical, que tinha a noção clara de que não poderia confessar a sua nostalgia pela Estado Novo mas que, em simultâneo, se mostrava incapaz de articular um argumentário e um discurso políticos que não remetessem para essa herança e para os seus tópicos discursivos e doutrinais: apologia de um presidencialismo de perfil autoritário; manutenção da presença de Portugal em África e ataque à descolonização; anticomunismo e antimarxismo; rejeição simultânea do socialismo e do capitalismo; nacionalismo e defesa do Ocidente e de uma certa ideia de Europa, adversa quer à hegemonia norte-americana, quer ao modelo de integração da CEE (um dos pontos programáticos do MIRN de Kaúlza de Arriaga era justamente a proposta de um plano de ajuda económica internacional para salvar Portugal em alternativa à integração europeia, no que seria secundado, anos depois, por intervenções de Fernando Pacheco de Amorim e outros, muito críticas da adesão de Portugal às Comunidades Europeias).
Relativamente à persistência do imaginário do Estado Novo, é sintomático que em 1979, quando foi lançada a Frente Nacional, o empresário Bernardo Guedes da Silva, um dos seus fundadores, tenha dito que ela visava “dar voz à Direita portuguesa que está sufocada desde a subida ao poder do dr. Oliveira Salazar”; mas, nessa mesma altura, outro dos animadores do movimento, Manuel Maria Múrias, reproduzia quase ipsis verbis proclamações de Salazar: “Não discutimos Deus, não discutimos a Pátria, não discutimos a Família, não discutimos a Autoridade”. O espectro de Salazar continuava a projectar-se sobre a direita radical, sendo, em boa medida, o seu ideal e até a sua razão de ser.
O tempo, ademais, corria a seu desfavor. Não foi por acaso que esta direita desdenhou o 25 de Novembro, pressentindo, e bem, que uma atmosfera tumultuosa, como a vivida no PREC, era o único ambiente em que poderia agir e florescer. A progressiva consolidação do regime democrático em torno de dois grandes partidos de centro corroía, à direita como à esquerda, a possibilidade de os extremos se afirmarem como uma alternativa credível (a qual, aliás, o povo sempre rejeitou). Por outro lado, com o passar dos anos e com a estabilização sociopolítica ficavam cada vez mais distantes alguns dos mitos e dos sonhos que alimentaram a direita extrema, a começar pela quimera de regresso a África ou a restauração de um modelo político autoritário ou próximo desse figurino.
Ainda assim, esta direita procurou emergir na cidade democrática, mesmo que subsistam fundadas dúvidas sobre se viu sequer a luz do dia, tão efémeras e contraditórias foram as suas realizações concretas. Grupos, houve muitos, dezenas deles. Riccardo Marchi regista-os minuciosamente um a um, sendo delicioso recordar, ou ficar a saber, que existiram ou foram concebidas organizações como o Movimento Nacional dos Empresários Usurpados (MNEU), a Associação de Defesa dos Direitos dos Accionistas (ADDA), a União dos Espoliados da Revolução de Abril (UERA), o Movimento Nacional de Fraternidade Ultramarina (FRAUL), a Confederação dos Interesses dos Desalojados (CID), a Inter-Organização de Refugiados (IOR), a Intervenção Nacionalista (IN), o Movimento para a Informação Objectiva (MIO), a Frente Nacional (FN), o Movimento pró-Pátria, o Partido da Aliança Portuguesa (PAP), o partido Reunir Para Reconstruir (RPR), a Frente de Ressurgimento Nacional (FRATERNA), o Último Reduto, a Resistência Fascista, a Frente Nacional Revolucionária, a Associação Portuguesa dos Prisioneiros Políticos Antimarxistas (APPAM) ou a fenomenal Associação dos “Malfeitores” da Ditadura Gomista-Gonçalvista, posteriormente designada Associação dos Ex-Presos Políticos Antitotalitaristas (AEPPA); isto a par de publicações com nomes como Patuleia ou Terceiro Milénio, para não falar de Resistência, Vária-8 ou o efémero vespertino A Nação (onde pontificaram jornalistas como Carlos Pinto Coelho, José Eduardo Moniz, Manuela Gonzaga, João Alves da Costa, Rui Tovar), bem como da presença de personalidades oriundas dos meios maçónicos no seio de um partido que se proclamava democrata-cristão...
Além de permitir um conhecimento preciso e detalhado desta e doutras realidades, o livro de Marchi é interessantíssimo para reconstruir o percurso de personalidades que, quando libertas das amarras da direita radical, viriam a desempenhar papéis de grande relevo na vida pública portuguesa, como foi o caso de Francisco Lucas Pires, José Miguel Júdice ou Adriano Moreira. Até por isso, fica plenamente demonstrada a importância desta investigação sobre aspectos que só na aparência são irrelevantes ou insignificantes na história da nossa democracia.
Mobilizando um imenso caudal de informação, obtido através da imprensa da época, de uma recolha exaustiva de fontes arquivísticas e bibliográficas, bem como de diversas entrevistas, este livro permite acompanhar de perto as trajectórias daquilo a que o autor denomina “direitas extraparlamentares”. Tendo utilizado a expressão “direitas radicais” em obras anteriores, com destaque para Império Nação Revolução. As Direitas Radicais no Fim do Estado Novo, de 2009, Riccardo Marchi mostra-se agora avesso a uma classificação de tipo doutrinário, optando por valorizar o que designa por “dimensão espacial”, nos termos da qual, diz-nos, mais do que o eixo direita vs. extrema-direita, deve ser sublinhado o binómio inclusão/exclusão. Porém, e sem contestarmos por completo a opção feita, não só a oposição direita vs. extrema-direita remete, também ela, para o critério espacial que o autor perfilha, como — e o que é mais decisivo — a “exclusão” da direita extra-parlamentar não resultou de uma escolha deliberada dessa direita por uma marginalidade anti-sistémica. Não é esse, convém dizê-lo, o sentido com que Marchi utiliza o conceito “extraparlamentar”, definindo-o como “condição objectiva de exclusão do parlamento, independentemente da vontade de o integrar ou não”. Nessa acepção, o termo “extraparlamentar” tem todo o sentido, ainda que, insiste-se para esclarecimento do leitor, os grupos e movimentos mais significativos que Marchi estuda apresentaram-se a eleições, buscaram lugares no parlamento democrático, intervieram nas presidenciais mas tiveram a desventura de não conquistar as graças do eleitorado; ou seja, o seu carácter “extra” (v.g., extraparlamentar) só é plenamente revelado a partir do olhar da actualidade. Riccardo Marchi invoca, em seu apoio, a jurisprudência constitucional alemã e a sua distinção entre direita “radical” e “extrema”, devendo ter-se presente, no entanto, que a direita portuguesa de 1976-1980 só foi “extraparlamentar” porque não conseguiu o número de votos para entrar na Assembleia da República, algo muito diferente do que aconteceu com a chamada “oposição extraparlamentar” germânica, a APO (außerparlamentarische Opposition).
Com rara honestidade intelectual, o autor delimita o campo de análise nas primeiras páginas do livro, reconhecendo aquilo que a sua obra não aborda e que dificilmente será alcançável em futuras investigações. Se a introdução de uma perspectiva comparativa transnacional, ausente neste livro, poderá ser colmatada em trabalhos subsequentes, entre os aspectos omitidos Riccardo Marchi realça a falta de uma sociografia das bases e dos vértices das direitas extraparlamentares, em consequência da inexistência de arquivos oficiais dos partidos e dos respectivos ficheiros de filiados (a desorganização interna deve ter sido, muito provavelmente, um dos traços característicos destes movimentos). Aquela não será, todavia, a omissão mais saliente deste livro, que deveria conter, à laia de introdução e para enquadramento do leitor, uma síntese sobre o período imediatamente anterior, os anos de 1974 e de 1975, e até mesmo — porque não? — do período final do Estado Novo, sobre os quais, Riccardo Marchi, de resto, já produziu ensaios de grande mérito. É certo que, em várias passagens deste livro, se retrocede ou avança para lá do período de 1976-1980; ainda assim, a compreensão do que aconteceu nesses quatro anos seria bastante facilitada se tivéssemos uma visão mais completa do biénio revolucionário e, sobretudo, se soubéssemos um pouco mais sobre eventuais continuidades (ou rupturas) dos grupos e redes que marcaram o imediato pós-revolução e o “Verão Quente”, por um lado, e os que emergiram ou prosseguiram a sua actividade no período subsequente, de 1976 a 1980.
Quanto às fontes e aos factos não há omissões de relevo nem lapsos a apontar. Todavia, o livro deveria ter referido, pela importância que tiveram na época, as Crónicas e Cartas de Manuel de Portugal, de 1976, o ensaio Do Voluntarismo na Revolução Portuguesa, de José Miguel Júdice, também de 1976, a par de outra bibliografia secundária, como diversos escritos de Adriano Moreira (ex. Carta Aberta — Nunca Tantos Governaram Tão Pouco e Saneamento Nacional, ambos de 1976; O Novíssimo Príncipe e A Nação Abandonada, ambos de 1977), além de biografias de protagonistas importantes, desde Bernardo Guedes da Silva (Guedes da Silva. O homem, o pensamento, a acção, de João Isidro, 1986) a Lúcio Tomé Feteira (Lúcio Feteira. A história desconhecida, de Miguel Carvalho, 2011), a par do livro de Fernanda Leitão intitulado Três Tempos: Tempo de Resistir, Tempo de Lembrar e Tempo de Poetar, 1974-1990, de 1991. E, já agora, A Direita e as Direitas, de Jaime Nogueira Pinto, conjunto de textos publicado em 1996. Anote-se ainda o erro recorrente de chamar Armando Santos Ferreira ao histórico dirigente do PDC António Santos Ferreira e de afirmar por diversas vezes que, entre 1976 e 1980, os partidos ou os seus dirigentes se dirigiram ao Tribunal Constitucional, instituição que só foi criada muito depois, em 1982. O que se passou, na verdade, é que as competências relativas ao registo de partidos políticos foram exercidas pelo Supremo Tribunal de Justiça até 1982, transitando a partir dessa data para o recém-criado Tribunal Constitucional, sendo aí que Riccardo Marchi consultou os respectivos processos, facto que o terá induzido neste lapso de pormenor que, apesar de tudo, deve ser assinalado.
Tratando-se de uma obra marcadamente descritiva, onde por vezes as paráfrases de citações alheias não permitem descortinar o que é próprio do autor e aquilo que é afirmado por terceiros, a parte final, de cariz analítico, contém uma conclusão que brilha pelo distanciamento crítico e pela imparcialidade da sua inteligência. Marchi explica o destino fracassado das direitas extraparlamentares com base em factores endógenos e exógenos, entre os quais a sua “indefinição identitária” e aquilo a que chama “personalismo da elite dirigente”. Daquela indefinição identitária da direita radical resultaram uma relutância em assumir o legado estado-novista e, mais ainda, uma hesitação em se posicionar sequer como “direita”. Concorda-se em absoluto com esta certeira caracterização, ainda que o termo “personalismo” possa não ser o mais adequado, até pela confusão que pode gerar com as teses de Mounier e outros. Corroborando esse “personalismo”, é indubitável que muito do que foram, ou não foram, as extremas-direitas daquela época radica em factores de natureza pessoal, ambições e ódios fratricidas (como os que opuseram Galvão de Melo a Kaúlza de Arriaga ou Pinheiro de Azevedo a Valdez dos Santos e, depois, a Sanches Osório), inimizades de morte, acesas trocas de insultos (nas páginas de A Rua, Múrias referiu-se à “megalomania de psicopata” de Spínola), lutas sem quartel pela liderança de forças ou grupos que, na prática, não passavam de um punhado de areia. Esta dimensão pessoal foi tão ou mais importante do que querelas doutrinárias ou divergências ideológicas; a par de uma desconcertante ausência de pragmatismo político e de uma atitude tão quixotesca quanto inconsequente, são os factores pessoais que explicam, em larga medida, as sinuosidades da extrema-direita de 1976-1980, os seus avanços e recuos, o seu fraccionamento em dezenas de grupúsculos sem a mínima expressão ou radicação popular e territorial. Daí que esse ponto devesse ter ficado mais explícito ao longo do livro, onde são relatadas as controvérsias internas das direitas sem que delas se extraiam as devidas conclusões em cada momento do quadriénio analisado.
Por outro lado, e no que se refere à “indefinição identitária” da direita radical de 197-1980, teria sido interessante dissecar os tópicos que caracterizaram, digamos assim, a cultura tribal e o imaginário das extremas-direitas daquela época. Entre diversos elementos, que seduziram dezenas ou centenas de estudantes dos liceus da Lisboa burguesa, avultam: (a) uma atracção pela “força” e o fascínio pelas fardas, militares ou paramilitares, provindas de leituras juvenis dos livros de Lartéguy ou da admiração pela OAS; (b) o culto da virilidade, inclusive no plano político, por vezes com laivos de anti-intelectualismo, conducente à veneração por forças especiais como os comandos ou os pára-quedistas; (c) o fascínio pela grandeza perdida de África, associado a um discurso de raiz luso-tropicalista, o qual, algo contraditoriamente, corria a par de declarações avulsas que desvendavam traços racistas e até antissemitas; (d) a hesitação entre conservadorismo e modernidade ou, se quisermos, entre tradição e revolução; (e) uma relação ambígua com o empresariado e com a ideologia da economia de mercado, sendo criticado o capitalismo mas dependendo-se dos financiamentos de alguns homens de negócios, como Lúcio Tomé Feteira, que apoiou a criação do MIRN, de Kaúlza de Arriaga, ou António Champalimaud, que financiou a Frente de Ressurgimento Nacional; (f) um permanente e autofágico conspirativismo (que levou, por exemplo, Pinheiro de Azevedo a atribuir o seu AVC de 1977 a uma conjura homicida dos “centros de decisão internacional”…); (g) uma noção sacrificial de patriotismo, muito herdada de glórias pretéritas do Império ou de exemplos vindos do estrangeiro; (h) a autoconsciência do seu carácter minoritário, que desembocava ora num ressentimento desalentado, ora numa vitimização lacrimejante, ora numa atitude altiva e contra mundum, próxima do mote orgulhosamente sós; (i) uma certa naïveté romântica, que conduz muitos dirigentes desta direita a julgar que todo o eleitorado abstencionista se revia nos seus projectos (um poema de 1979 do cineasta António Lopes Ribeiro dizia: “Quem pretende militar / Na contra-revolução / Não poderá hesitar: / Tem de se abster da abstenção”), quando, na verdade, mesmo entre os nostálgicos do Estado Novo as inclinações de voto — e o bom senso — iam no sentido de partidos mais robustos e consolidados (uma sondagem do início da década de 1980 revelou mais de 10% de tendência ideológica salazarista no PSD e no CDS).
No entanto, e porventura mais decisiva do que as idiossincrasias desta cultura tribal, foi a falta de financiamentos e de apoios externos que condicionou o destino trágico da direita extraparlamentar. Não quer isto dizer que, se existissem dinheiro e redes internacionais de suporte, a extrema-direita teria tido êxito; uma afirmação desse género assentará sempre em raciocínios contrafactuais e meras especulações ou palpites. O livro de Riccardo Marchi, aliás, demonstra à saciedade, através de inúmeros exemplos, que a direita radical procurou afanosamente relacionar-se com as suas congéneres europeias. Alguns estrangeiros vieram a Portugal, como sucedeu com o intelectual romeno Vintila Horia e com o líder da Fuerza Nueva, Blas Piñar. Contudo, a extrema-direita não teve grande êxito nesse projecto de internacionalização, seja por debilidades próprias, seja pela concorrência de outras forças políticas, com destaque para o CDS (a tentativa de ligação à CSU de Franz Josef Strauss e à União Europeia das Democracias Cristãs foram talvez os casos mais flagrantes).
Alguns pontos mereceriam, possivelmente, maior aprofundamento nesta obra. Desde logo, o papel da Igreja, que só é aflorado a propósito de intervenções pontuais vindas da diocese de Braga (por ex., o arcebispo D. Francisco Maria da Silva apoiou o nome A Rua, sugerido por António Manuel Couto Viana para título do semanário dirigido por Manuel Múrias; e o seu sucessor, D. Eurico Dias Nogueira, além de se avistar com Kaúlza de Arriaga, hostilizaria Sanches Osório por ser divorciado, segundo o testemunho daquele ex-dirigente do PDC). A dado trecho, refere-se uma surpreendente intervenção política da Universidade Católica, a qual, de acordo com o relato de Riccardo Marchi, baseado numa notícia do jornal O Dia, apresentou em 1980 um manifesto conjunto com a Universidade Livre em apoio da candidatura presidencial de Soares Carneiro. Por outro lado, seria interessante determinar mais claramente que acções desenvolveram, ou não, os expatriados no Brasil e em Espanha, os ex-combatentes do Ultramar e os antigos quadros do Estado Novo, em especial os funcionários da PIDE/DGS, alguns dos quais deram à estampa livros que causaram sensação, como foi o caso, em 1979, das Memórias de um Inspector da PIDE, de Fernando Gouveia. Por fim, dever-se-ia analisar com mais detalhe que relações existiram com os monárquicos, seja os agrupados no PPM, seja os que não se reviam em qualquer projecto político convencional.
Estas são, em todo o caso, lacunas menores de uma obra que se destaca pelo rigor e a dimensão da investigação feita, a qual, entre o mais, levou o autor a mergulhar a fundo em centenas e centenas de jornais publicados entre 1976 e 1980. Uma obra anterior de Marchi foi criticada nas páginas de O Diabo, sendo aí apelidada de “monumental maçada cronológica”. Trata-se de um juízo tão injusto como equivocado, uma vez que o autor, apesar do já assinalado carácter descritivo deste seu novo livro, vai muito para lá de um mero encadeamento de factos e acontecimentos. Com efeito, este livro confirma o que já sabíamos: Riccardo Marchi é o maior especialista nas direitas radicais portuguesas anteriores e posteriores ao 25 de Abril, o que fica a dever-se à excelência dos seus dotes de investigador e à sua admirável lucidez analítica. Muito provavelmente, A Direita Nunca Existiu é um livro definitivo e inultrapassável sobre os percursos das direitas entre 1976 e 1980.