Às vezes uma colecção de arte é como o filho que não se teve
António de Medeiros e Almeida foi um dos homens mais ricos do país. Apaixonado por carros e relógios, reuniu uma vasta colecção de pintura, escultura e artes decorativas que pode ver-se hoje num museu que os estrangeiros conhecem melhor do que os portugueses. É em Lisboa.
Era um homem com um faro raro para os negócios e um apaixonado pela velocidade e pela inovação tecnológica. Audaz, autoritário, meticuloso, tornou-se cada vez mais solitário quando a mulher com quem partiu para lua-de-mel num carro de corrida morreu. António de Medeiros e Almeida e Margarida Pinto Basto não tiveram filhos e talvez por isso, defende quem lhes conhece bem a biografia, tenham reunido ao longo da vida e com especial dedicação uma importante colecção de arte que, apesar de exposta desde 2001 num palacete da Rua Rosa Araújo, ali bem perto da Avenida da Liberdade, poucos conhecem.
“Esta colecção foi para eles como um filho. Sobretudo para ele. Foi com Medeiros e Almeida que nasceu, foi ele que criou condições para que crescesse… Acompanhou cada passo, cada novidade. E é através da colecção que ele está, de certa maneira, vivo. É a colecção que o eterniza, que o continua, tal como acontece a quem tem filhos”, diz Teresa Vilaça, directora da Casa-Museu Medeiros e Almeida, em Lisboa.
Instalada num edifício comprado pelo empresário em 1943, ampliado na década de 1970 à custa do jardim, este pequeno museu é o reflexo do gosto de um coleccionador e guarda um vasto acervo de pinturas, esculturas, cerâmicas, porcelanas, pratas, jóias, têxteis, relógios e mobiliário, reunido ao longo de 40 anos por aquele que foi um dos homens mais ricos do país. Lisboeta nascido na Rua do Salitre, Medeiros e Almeida começou por ser o representante nacional da histórica marca de automóveis britânica Morris e acabou a gerir mais de 20 empresas ao mesmo tempo, tendo sido administrador do grupo açoriano encabeçado por Vasco Bensaúde. Na história da aviação civil em Portugal, tem um lugar entre os pioneiros.
Também com interesses na marinha mercante e ligado a projectos turísticos emblemáticos como os hotéis de luxo Ritz (Lisboa) e Alvor (uma das primeiras unidades do género no Algarve), António de Medeiros e Almeida cedo começou a interessar-se por arte, embora só comprasse peças de forma sistemática nos grandes antiquários e leiloeiros europeus a partir da década de 1940.
Da sua colecção, que é hoje vista por mais estrangeiros do que portugueses (11 mil visitantes em 2016, 40% nacionais), fazem parte exemplares das primeiras porcelanas encomendadas pelos ocidentais na China (o chamado gomil de D. Manuel, de c. 1519), tapeçarias belgas do século XVI, uma sumptuosa baixela do ourives inglês Paul Storr, salvas de prata de fabrico português (século XVI), um altar de capela em talha dourada comprado no leilão do conde Burnay, uma escultura flamenga do século XVI em que Maria Madalena e José de Arimateia aprecem vestidos como cortesãos, painéis de azulejo do século XVIII, um deles com uma curiosa representação de um escravo negro, e um impressionante conjunto de relógios do mestre francês Louis Breguet, incluindo um encomendado pelo general Junot, pouco antes das tropas de Napoleão terem invadido a Península Ibérica.
“Ele comprava o que gostava, o que achava que ia ficar bem, e comprava por todo o lado”, diz Teresa Vilaça, a directora da casa. “Não tinha ninguém a aconselhá-lo. Se queria uma coisa virava o mundo para a conseguir. E negociava, negociava até conseguir o preço mínimo, mas depois pagava em cash. Os antiquários de Londres e Paris andavam sempre atrás dele.”
Foi assim com o auto-retrato que, até ao fim – morreu em Fevereiro de 1986, aos 90 anos – acreditou ser do mestre holandês Rembrandt (em 2000 dois especialistas contestaram a atribuição, garantindo tratar-se de uma obra do seu atelier). O empresário comprou-o em 1956, num leilão parisiense a que se deslocou pessoalmente e em que disputou a pintura com o prestigiado Rijksmuseum, o museu nacional da Holanda. “Pagou por ele 12.500 francos, uma soma avultadíssima para a época. Tinha um orgulho imenso em ser dono de um Rembrandt.”
A pintura europeia, fosse a do norte, fosse a francesa ou italiana, faziam parte da sua lista de preferências. Percorrendo hoje o palacete, seja na chamada ala nova (a que resultou da ampliação de 1973), seja na casa onde viveu com a mulher, Margarida, até 1960, ano em que se mudam para uma residência contígua (porque Medeiros e Almeida tinha já na cabeça a ideia de criar uma casa-museu), encontram-se pinturas de Giovanni Battista Tiepolo, Antonio Moro, Jan van Goyen, Eugène Delacroix (um retrato que pertenceu ao pintor Edgar Degas e ao poderoso coleccionador judeu Jacob Goldschmidt), Pieter Brueghel, o Jovem e Jan Gossaert.
“Quando acaba a Segunda Guerra Londres e Paris estão destruídas e as grandes famílias precisam de dinheiro. Medeiros e Almeida está no auge da sua vida em termos financeiros e está muito atento. É neste período que compra muitas das melhores obras internacionais da colecção.”
Uma colecção em que se torna evidente a sua predilecção pelos relógios e pelas peças de aparato, mas também pelas porcelanas e lacas orientais, um gosto que adquire com os ingleses.
“Ele gosta de peças que enchem o olho. E gosta daquela profusão decorativa que evoca muito o romantismo”, diz Teresa Vilaça, chamando a atenção para os quartos e salas de paredes e tectos pintados. “Os antiquários franceses sabiam de palácios que iam ser demolidos e iam até lá para ver se havia divisões inteiras que pudessem comprar. E depois telefonavam-lhe. Há salas da ala nova projectadas em função da boiserie [um revestimento francês de madeira típico dos século XVII e XVIII]” que Medeiros e Almeida queria ali ver instalada.
A estas boiseries há que juntar tectos da Europa do norte, tapeçarias flamengas com bacantes, uma escrivaninha cujo par está na prestigiada Wallace Collection de Londres – “foi a sua última grande compra, nos Estados Unidos, e chega a Portugal já depois do 25 de Abril” – ou uma "extraordinária" cómoda D. José.
Um conservador livre
Uma visita à Casa-Museu Medeiros e Almeida faz-nos querer saber mais sobre este empresário que prosperou durante o Estado Novo, mas que nunca foi um “aficionado” pelo regime. Lembra o catálogo da exposição que o seu museu lhe dedicou em 2011 (O Triunfo de uma Vida) que teve durante muito tempo dois colaboradores ligados ao PCP que não se coibiu de proteger da polícia política sempre que era preciso. “Era um homem próximo do regime, mas nem por isso deixava de pensar pela sua cabeça. Era um conservador, mas um conservador livre”, garante Vilaça.
A família fazia gosto que ele fosse médico, mas Medeiros e Almeida sempre detestou a ideia. O pai, que tinha consultório em Lisboa, onde atendia a burguesia, dava também muitas consulta pro bono como médico de família. “Tinha dinheiro, mas era um homem cheio de preocupações sociais, coisa que depois passa ao filho.”
O estudante troca então a Faculdade de Medicina de Coimbra pela Alemanha, onde conta ganhar conhecimentos e experiência na área comercial. Nessa época, começo dos anos 1920, estava já noivo da sua futura mulher, filha de um dos donos da fábrica Vista Alegre, e tinha comprado o seu primeiro carro, um Morris Cowley, a meias com um amigo.
Ao regressar a Portugal meses mais tarde, decide dedicar-se à venda de automóveis, tornando-se o importador exclusivo em Portugal dos carros fabricados pelo inglês William Morris, que aceitou fornecer-lhe veículos à consignação, algo muito pouco habitual, porque terá achado que o arrojo do jovem empresário o merecia.
Ligação açoriana
O negócio dos carros começou por dar prejuízo, mas depois transformou-se num dos alicerces da fortuna de Medeiros e Almeida até que, em 1955, vendeu a sua participação na firma A. M. Almeida. Por essa altura geria há muito os negócios açorianos do pai – empresas de açúcar e álcool – e era sócio de Vasco Bensaúde, patrão de um importante grupo empresarial português que Medeiros e Almeida administraria durante 26 anos.
O arquipélago dos Açores não era apenas central à sua geografia familiar – era um ponto nevrálgico dos seus negócios.
Com amigos na diplomacia britânica e pró-aliado convicto num país que era oficialmente neutro, Medeiros e Almeida facilitou aos ingleses a utilização dos portos açorianos, onde as suas embarcações podiam abastecer e ser reparadas, atitude que lhe valeu uma condecoração de Jorge VI.
Em 1941, como administrador da Bensaúde, foi um dos cinco investidores que criam a Sociedade Açoriana de Estudos Aéreos Limitada, a futura SATA, para explorar as ligações entre o arquipélago e o continente. Sete anos mais tarde comprou a Aero-Portuguesa, companhia fundada em meados da década de 1930 e que enfrentava graves dificuldades financeiras. A empresa, que até aí operava com uma aeronave cedida pela Air France para fazer as ligações ao Norte de África, só passou a ter um avião quando Medeiros e Almeida foi a França comprar um por 38 mil dólares, mandando instalar um sistema de som para que os passageiros pudessem ouvir música.
Durante a Segunda Guerra Mundial, aliás, a Aero-Portuguesa era a única a voar para o Norte de África e é por isso que é um avião desta companhia que aparece na mítica cena de Casablanca em que Rick (Humphrey Bogart) se despede de Ilsa (Ingrid Bergman) e a perde para sempre.
Em 1953 esta companhia foi integrada na TAP. Não se conhecem os contornos deste negócio, mas o que se sabe é que o empresário foi irredutível num ponto – a operação só avançaria se a integração dos 60 funcionários da Aero-Portuguesa fosse garantida.
“O bem-estar dos seus funcionários era uma coisa que o preocupava, algo que não era comum a muitos dos empresários da época”, diz a directora da casa-museu, lembrando os relógios que mandou fazer para estes 60 trabalhadores.
Pessoa de trato difícil, assim se descrevia, Medeiros e Almeida nunca deixou de apoiar causas sociais e chegou mesmo a presidir à Fundação Salazar, criada para construir habitação de renda económica de Trás-os-Montes a Timor, lembra Teresa Vilaça. “Ele é convidado para a fundação pelo Américo Thomaz [Presidente da República], que sabia que ele era muito bom gestor e tinha contactos no meio industrial e financeiro, coisa importante para uma fundação que vivia de donativos e que não acabou com o 25 de Abril, só mudou de nome.”
Considerado um homem próximo do regime – “não era amigo de Salazar, note-se, os dois respeitavam-se mas não eram chegados” –, o empresário enfrentou dificuldades no pós-25 de Abril de 1974, e viu toda a sua carteira de acções ser nacionalizada, explica a conservadora.
Medeiros e Almeida tinha então quase 80 anos mas mantinha o dinamismo de sempre. Em 1973 criara a fundação com o seu nome para gerir a colecção e começara as obras no palacete. “Quando se dá a revolução ele já tem a ampliação em curso, o que o obriga a pedir um empréstimo de 60 mil contos ao Banco Fonsecas e Burnay e, de repente, vê-se em dificuldades para pagar aos operários.” Medeiros e Almeida não estava habituado a ter dívidas. “Sem liquidez, começa a ficar numa grande aflição, mas não desiste.”
O dia de Natal de 1978, conta Vilaça, traz-lhe um presente – depois de receber em sua casa a visita de António Ramalho Eanes, então Presidente da República, e da sua mulher, Manuela, Medeiros e Almeida vê a situação melhorar. “Há uma carta em que ele agradece a intervenção do casal Eanes. Ele nunca quis que esta colecção ficasse para o Estado, mas sempre quis que ela fosse vista. O projecto de fazer uma casa-museu era para ele muito importante.”
Até à véspera da sua morte, já com 90 anos, Medeiros e Almeida ainda ia diariamente ao seu escritório na Rua Braancamp. “Tinha uma vontade de ferro e uma obsessão pelo detalhe que esta casa mostra bem.” Na sala de jantar, onde a mesa está posta a rigor, pode ver-se uma reprodução do plano que ele mesmo fez com a distribuição dos lugares num jantar que ficou célebre, em Abril de 1964, tudo porque os convidados de honra eram Grace e Rainier do Mónaco e, nessa noite, Amália Rodrigues chegou para cantar, já depois da sobremesa.