Adirley Queirós filma o subúrbio que veio do espaço

Era uma Vez Brasília mostra o Brasil contemporâneo como uma enorme prisão de um futuro distópico, percorrido por um absurdo inexplicável. É um dos grandes filmes de Locarno

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Podemos falar francamente? Sim? Então vamos lá: que porra é esta? Que raio de filme é Era uma Vez Brasília, primeira entrada brasileira na selecção oficial de Locarno (na competição Signs of Life), sucessor do espantoso Branco Sai Preto Fica na filmografia de Adirley Queirós?

Um filme em êxtase, em animação suspensa, rodado enquanto o Brasil arde e nada avança, nada se faz, enquanto o tempo passa e tudo fica na mesma para quem está em baixo, nas ruas, nos subúrbios, nas favelas. Um filme-gémeo de Branco Sai Preto Fica, que em Portugal passou no Doclisboa (mas, surpresa das surpresas, está disponível no Netflix!), que partilha com ele a dimensão de ficção-científica fajuta mas lhe responde com uma estranha sensação de isolamento, de isolação, de desolação. Permitam-nos uma possível definição para esta nova declaração de intenções do cinema brasileiro contemporâneo: Era uma Vez Brasília é o espírito de Glauber Rocha possuído por Chantal Akerman filmando um guião de John Carpenter.

Adirley Queirós, oriundo de Ceilândia, subúrbio de Brasília, é um caso à parte, um corpo estranho no cinema brasileiro, mas um corpo que reclama uma outra proximidade do real. Em Lisboa, onde deu os últimos toques no filme (co-produzido pela Terratreme e com fotografia da portuguesa Joana Pimenta), Queirós dizia ao PÚBLICO isto: “O cinema brasileiro, em geral, tem esse aspecto de estar sintonizado com aquilo que os seus autores acham ser a narrativa do real. Mas a narrativa do real deles é só de um lugar, de um lugar de classe. Que eles entendem como ‘ah, o pobre é assim, o deficiente é assim, o periférico é assim, esses caras não entendem política’… A forma do documentário no cinema brasileiro é a forma mais opressora em relação ao documentado, que nunca tem a possibilidade de sair do lugar, nunca. Ele sofre na vida e vai sofrer também no cinema. Publicamente.”

Ficção com um pé na realidade

O cinema de Queirós, então, feito em Ceilândia, recorrendo a actores não-profissionais, usa a realidade do Brasil contemporâneo como ponto de partida mas constrói ficções desenrascadas de género, abertamente inspiradas pelo filme de kung fu, de terror, de ficção-científica, de acção. Branco Sai Preto Fica ficcionava a partir de um caso real de violência policial numa festa ilegal; Era uma Vez Brasília é mais abertamente ficcional, mas sempre com um pé na realidade, reflectindo os novos tempos do Brasil, rodado com orçamento de documentário e inspirado nas próprias experiências dos seus actores. O centro do filme é a viagem a Ceilândia de um assassino intergaláctico (Wellington Abreu), um pobre diabo enviado para matar o presidente Juscelino Kubitschek para salvar a família e a pele, e que vem, na definição do realizador, de um planeta “muito mais fodido que o Brasil”.

“Ele vem do planeta Sol Nascente, que é também o nome da maior favela do Distrito Federal de Brasília,” explica Queirós para falar da realidade das usa personagens. “E o que o Wellington fala é a história da vida real dele: ele invadiu um lote e foi preso pela polícia. O Marquim da Tropa levou tiro da polícia e ficou numa cadeira de rodas. A Andreia Vieira é mesmo uma ex-presidiária em liberdade condicional. Conversei com ela, tenho 50 horas de depoimentos dela, para chegar aqui, para chegar ao absurdo do real. O filme começou como um documentário sobre o absurdo do Brasil hoje, e aos poucos foi desviando para a ficção, a partir do momento em que começámos a pensar como seria estar preso, como seria tentar fugir, como fugir da cadeia se não se for super-herói?… E deixámos o filme libertar-se nesse sentido, filmando Ceilândia como uma cidade-presídio, onde eles estão sempre presos.”

Mais do que presos, estas são personagens manietadas por uma sociedade que as usa apenas como “carne para canhão” ou “mão-de-obra”, uma classe inferior que não as encara como capazes de pensar por si próprias – o equivalente brasileiro do “basket of deplorables” que arranjou problemas a Hillary Clinton durante as eleições americanas de 2016. Adirley Queirós faz questão de as colocar no centro do filme, de lhes dar voz e de mostrar o seu quotidiano sem futuro, “trazer o sofrimento existencial das personagens, o seu silêncio, a sua agonia” para o ecrã, filmando o Brasil suburbano como uma distopia nocturna e sem esperança, onde a única luz é o amarelo doentio das lâmpadas fluorescentes.

Um filme-manifesto

Onde Branco Sai Preto Fica era um filme-manifesto feito de energia, de música, de revolta, Era uma Vez Brasília é um filme em lume brando, panela de pressão permanentemente à beira de explodir, reflectindo o descontentamento, a decepção, o desespero que todo o processo do impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer trouxeram àquele que foi o “país do futuro”. “Branco Sai Preto Fica foi feito no período Dilma, em que, com todas as contradições, ainda achávamos uma esperança, ia ser melhor,” diz Queirós. “Agora estamos num período em que a promessa do sol nascente não vai vir tão cedo.” Era uma Vez Brasília filma essa escuridão de modo simultaneamente lúdico e negro, criando “um espaço de fábula para o combate político. Esta é a minha forma de reacção: criar um espaço de liberdade onde a gente pode se construir.”

É esse espaço de liberdade que nos faz pensar “que porra é esta?”. E que faz de Era uma Vez Brasília um dos grandes filmes de Locarno70. Mais: um dos grandes filmes de 2017.

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