Toro y Moi: o homem no espaço prossegue a sua viagem

Boo Boo, o novo álbum em que o virtuoso Toro y Moi carrega nos sintetizadores, não é, ao contrário do que se poderia pensar, um regresso ao passado – pela simples razão de que ele nunca saiu de lá.

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Homem multifacetado, tem outros projectos musicais, caso da música mais direccionada para a pista de dança que assina como Les Sins, é designer, o que se nota no cuidado e bom gosto do seu dispositivo visual, talentosíssimo multi-instrumentista e compositor

Muitos lembrar-se-ão do screensaver do Windows nos anos 90: uma silenciosa e lenta sucessão de janelas (justamente) de cores garridas mas melancólicas (herança e nostalgia dos eighties…), com o cosmos, escuríssimo, misteriosíssimo, em fundo. E nós ali, à deriva, a ficção científica das salas de cinema a passar para o ecrã doméstico. Windows, canção inscrita em Boo Boo, o novíssimo álbum de Toro y Moi, ajusta-se, na perfeição, a essa ambiência sideral do screensaver de Bill Gates, também ele (álbum) uma janela que se vai constantemente desdobrando em muitas outras (melódicas, estéticas, atmosféricas), levando o ouvinte a rodopiar muito lentamente, qual meteorito, num cosmos de gravidade zero (“I'm just a satellite, I been zoning out”, ouve-se-lhe em You and I). Mas a viagem espacial de Toro y Moi faz-se, ao contrário do que frequentemente está inculcado no imaginário popular, não em direcção ao “futuro”, mas ao passado – aos anos 90 (os do Windows, justamente), sim, mas também (e sobretudo) às atmosferas características da synth-pop que, à boleia da new wave, marcou os anos 70 e 80, com a particularidade de os padrões rítmicos do rock e do pós-punk serem aqui trocados por batidas lânguidas, espaçadas, mais devedoras do downtempo e daquilo que convencionalmente se passou a chamar, nos finais da primeira década dos anos 2000, de chillwave. Embora, verdade seja dita, Chaz (de Chaz Bundick), cujo primeiro lançamento data de 2009 (Blessa), nunca tenha saído daí, do passado – ou, se quisermos, do “futuro”.

Queremos dizer: da ideia-de-futuro que se projectava nessas décadas (60/70/80) perante uma nova forma (a electrónica) de fazer e compor música e as potencialidades sonoras daí advindas, constituintes, na verdade, de todo um novo mundo – “Choque do Futuro!” (Future Shock), exclamava o álbum de 1983 de Herbie Hancock, justamente uma experiência em que a electrónica era factor de novidade (e de estranheza) no trilhar de novos caminhos no funk, no hip-hop e, sobretudo, no cruzamento dos dois. Choque sónico que ia lado a lado com o choque tecnológico e, por consequência, cultural da época, tão propiciador de bem-estar como de incerteza e, até, de angústia: “Welcome to the 80's, y'all / The land of technology, you and me / What else is crammed in here? / Surviving in the 80's”, cantava alguém como André Cymone (em tempos baixista de Prince) no seu álbum Survivin’ In The 80’s, editado no mesmo ano do de Hancock - e no qual se inscreve também uma faixa de esclarecedor título Don't Let The Future (Come Down On You). Chaz, bem mais novato do que esta gente toda, não alimenta angústias nesse campo, e esse “passado-futuro”, além de sensação nostálgica (escreve quase sempre com referência a acontecimentos ou momentos passados…), é, para ele, sobretudo fonte de prazer e (re)criação.

Viajar pela música adentro

É provável que, escutando este disco (e alguns momentos de outros discos anteriores), o ouvinte se imagine numa melancólica e cálida Califórnia a meio sol, algures entre Santa Cruz, Los Angeles, Long Beach ou San Diego, grandes avenidas balneares ornamentadas a palmeiras, pranchas de surf e néones fluorescentes – e, se juntarmos a isto a alusão cósmica com que iniciámos estas linhas, então bem que podemos ter aqui o “Cosmic Surfin’” do primeiro álbum dos japoneses Yellow Magic Orchestra, percursores óbvios da synth-pop (mais electrónica, menos rockeira) que atravessa Boo Boo. A ironia está em que Chaz é originário de Columbia, capital do estado da Carolina do Sul, precisamente no oposto da Califórnia no mapa americano, embora isso não o impeça de usar e abusar (no melhor sentido) dos sintetizadores no disco. Esses que, além da synth-pop, foram cruciais para o escavar de novos trilhos, caso do G-Funk, sub-género do hip-hop com origem em Los Angeles, e hoje tão maravilhosamente renovado por gente como Dâm-Funk, o qual, não por acaso, já misturou Say That, canção de Anything In Return, álbum de 2013 de Toro y Moi.

Homem multifacetado (tem outros projectos musicais, caso da música mais direccionada para a pista de dança que assina como Les Sins, e também é designer, o que se nota no cuidado e bom gosto de todo o seu dispositivo visual), talentosíssimo multi-instrumentista e compositor de canções, a sua prolífica discografia é uma – e está em – constante digressão exploratória. Não se sai da ideia de “viagem” com que iniciámos estas linhas, e o vídeo de cerca de 50 minutos que acompanha o álbum é, toda ele, uma viagem de Chaz de carrinha pela Bay Area de São Francisco onde vive, e sobre cuja recente gentrificação contrapõe, em No Show, “People say it's crazy now / Honestly it feels the same”. Com a particularidade de, tocando a sua discografia diversas paisagens e matizes, tenha sabido manter sempre uma distinta identidade e, acima de tudo, um bom gosto admirável.

Do seu primeiro álbum (Causers of This), menos cançonetista e, sobretudo, mais interessado em tactear experimentalmente as possibilidades da electrónica, ao indie rock e à pop (June 2009, What For?), passando pela soul psicadélica ("É incrível como o amor pode funcionar como a droga, como uma trip de ácido”, disse ele em entrevista à publicação Noisey), o funk, o house e o hip-hop menos ortodoxo (Underneath The Pine, Anything In Return, Samantha), Chaz é esse diletante explorador de arma na mão. Sendo que esta bem pode ser um instrumento convencional (Chaz é baterista, baixista, teclista, guitarrista…), como softwares informáticos, caixas de ritmos, samplers, Auto-Tune ou, claro, os sintetizadores que desenham todo o corpo de Boo Boo. Algo – a abordagem técnica diversificada à composição – que o aproxima de alguém que nos é muito querido: se é certo que Bundick não possui a elasticidade ou, simplesmente, a capacidade vocal performativa de Prince, partilha com ele o gosto por uma experimentação transgénera e inventiva, tanto nos meios técnicos a que recorre como nos resultados que produz (e, tal como o pequeno génio de Minneapolis, nota-se um extremo prazer num processo de trabalho que é, simultaneamente, momento de recriação pessoal e diversão). Boo Boo não é excepção, e à electrónica e à pop juntam-se a pulsão funk (Mirage, a abrir, não deixa dúvidas) e o “atmosferismo” sedativo, quase vaporwave.

Se Chaz não tem o toque de Midas, anda lá muito perto, não deixando nunca, porém, que o colorido da sua música (com correspondência na encenação visual dos videoclips do disco, sempre evocadores dos anos 80) cedam às fórmulas mais pré-formatadas da pop – oiça-se Pavement, incursão completamente exploratória, não linear, intermitente, ou Embarcadero, outra composição exclusivamente instrumental sem rumo definido e despido de qualquer adorno vocal. E, tal como Prince, Chaz não tem medo do embate, outra forma de falar da sua coragem para fazer melodias ultra-românticas, mesmo corny (arriscadíssimas aquelas teclas inicias em Embarcadero e Labyrinth), sobre relações que não atam nem desatam (são os 30 e a ressaca da desilusão de relações fracassadas de mão dada com o medo de comprometimentos futuros).

Escritas após o fim complicado de uma relação que foi afectada pela recente fama (ma non troppo) que o rodeia, aqui se encontram letras ora desconcertantemente naif (caso da viciante Girl Like You, um dos primeiros singles divulgados), ora maduras e, até, derrotistas (“One man making choices for himself / Two shaking voices often tell a lie / (…) Oh there's another one for you / (…) Another one for you and me too”, em “Mona Lisa”), em qualquer caso casando sempre na perfeição com a toada voluptuosa, turva, muito dreamy, quase sempre melancólica, como se as palavras tivessem saído para o papel num estado intermédio de consciência. Sem que isto diminua, claro está, o charme e a carga altamente sensual, insinuante, que climatiza todo o disco, tal e qual, já advinharam, o autor de Purple Rain. No fim do dia, o melhor disto tudo é saber que, ao contrário do que vemos no final do vídeo que acompanha o álbum – o músico sentado, depois do percurso de carro, a contemplar a paisagem –, este disco não representa qualquer “fim de viagem”, e que, assim que Chaz se levante, a viagem prosseguirá. Que num destes dias faça uma paragem por Portugal (onde já esteve em 2010 e 2015, tempos em que granjeou de um significativo hype no burgo, entretanto serenado), eis pelo que ficamos a aguardar.

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