Caracas desiste do diálogo e endurece duelo contra a oposição
Ao mandar Leopoldo López e Antonio Ledezma de volta para a prisão militar, o regime de Nicolás Maduro passou uma mensagem clara: o ajuste de contas já começou.
A publicação de vídeos gravados por Leopoldo López e Antonio Ledezma, os dois presos políticos mais proeminentes na Venezuela, a denunciar a “fraude” da assembleia constituinte levou muita gente no país a especular sobre uma possível abertura do regime para se sentar à mesa com a oposição e abrandar o dramatismo em torno da iniciativa presidencial para reescrever a Constituição. Mas a detenção dos dois, durante a madrugada de terça-feira, pôs fim às ilusões sobre a tolerância e disponibilidade do chavismo para seguir a via da reconciliação. Pressionado dentro e fora de portas, o Governo abriu definitivamente mão do diálogo, e enveredou – com determinação e sem nenhum pudor – pela linha dura do confronto e da repressão.
Já passava da meia-noite quando agentes do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin), os serviços secretos venezuelanos convertidos na polícia política do regime, se apresentaram à porta de casa de Leopoldo López, que deixou a prisão militar de Ramo Verde no dia 8 de Julho para cumprir a sua pena em regime de prisão domiciliária. “#Urgente, acabam de levar o Leopoldo de casa. Não sabemos onde está nem para onde o levam. Maduro será responsável por tudo o que lhe acontecer”, denunciou a mulher, Lilian Tintori, numa mensagem publicada no Twitter de madrugada.
Uma cena semelhante aconteceu no prédio onde Antonio Ledezma, de 62 anos, permanece detido desde 2015, a aguardar uma sentença sob acusação de crimes contra a paz, a segurança e a Constituição. Um vídeo gravado por moradores e publicado nas redes sociais mostra o antigo autarca do município Libertador de Caracas, em pijama, a ser arrastado: “Estão a levar o Ledezma! Isto é uma ditadura!”, gritam as vizinhas, enquanto homens armados da Sebin o empurram para dentro do elevador.
“O que aconteceu esta noite na Venezuela foi um sequestro de dois cidadãos pelas suas ideias políticas, pessimamente mascarado em supostos crimes inventados pela ditadura”, acusou o advogado de defesa de Leopoldo López, Javier Cremades. Num texto publicado pelo jornal El País, o advogado diz que as detenções provam “a deriva autoritária” na Venezuela, “que se evidencia na ausência de Estado de direito, de separação de poderes e, desde domingo, de inexistência de regime democrático com sufrágio universal”.
Durante a campanha de promoção da assembleia constituinte, Nicolás Maduro garantiu que já tinha várias celas preparadas para “acomodar” os deputados e políticos da oposição. “Vamos ajustar todas as contas”, prometeu. Logo depois da votação, o Presidente confirmou que havia ordem de detenção de todos os opositores que acusassem o regime de fraude eleitoral ou apelassem à resistência ou insubordinação popular. Além disso, revelou que a primeira primeira prioridade da nova assembleia seria retirar a imunidade parlamentar dos deputados da MUD. “E muitos deles vão acabar na cadeia”, antecipou.
López e Ledesma poderão ter sido as primeiras “vítimas” dessa purga, a coberto do novo mandato político da assembleia constituinte que, quando for empossada, concentrará todo o poder na Venezuela. Na véspera da votação, o antigo líder do partido Vontade Popular, Leopoldo López, divulgou uma mensagem em que apelava à insurreição pacífica contra a iniciativa com que Maduro “pretende aniquilar a república e Estado democrático e conseguir a submissão absoluta dos venezuelanos”. Antecipando a fúria do regime, deixou uma nova mensagem, que a mulher publicou esta terça-feira: “Se estão a ver este vídeo, será porque me prenderam outra vez, de forma ilegal e injusta”, diz López, que em 2014 foi acusado de conspiração, incitamento à violência e terrorismo e condenado a uma pena de prisão de 14 anos.
Ledezma gravara um vídeo no rescaldo da votação, denunciando o “golpe” contra a democracia e confessando o seu temor. “Sabemos que o aparelho de segurança foi posto ao serviço da tirania do regime totalitário.” Mas além de atacar o Governo de Maduro, criticou também a oposição da MUD, uma plataforma heterodoxa de partidos e movimentos que vão da esquerda radical à extrema-direita. “Não se ganham batalhas se nos derrotamos a nós próprios e não corrigimos os nossos erros. Se fizermos uma autocrítica, não tenho dúvida que a Venezuela conquistará em breve a liberdade, livrando-se deste Estado falhado”, afirmou.
Para o director da organização de defesa dos direitos humanos Human Right Watchs, José Miguel Vicanco, “a detenção arbitrária de duas figuras da oposição, a meio da noite, é uma manobra cobarde que só um ditador desesperado por se manter no poder pode aceitar. Mas a prisão dos críticos mais ferozes do regime não vai travar o descontentamento com Maduro. Pelo contrário, só vai servir para comprovar os seus abusos, que estamos a documentar cuidadosamente”, informou, a partir de Nova Iorque.
Para calar o burburinho, o Tribunal Supremo de Justiça divulgou uma nota a meio da manhã a justificar o raide nocturno e a detenção de López e Ledezma, que tinham feito declarações políticas e dado entrevistas aos media, em violação dos termos que sustentaram a autorização da prisão domiciliária. Ainda segundo o tribunal, a medida foi revogada por causa de informações dos serviços secretos sobre um alegado plano de fuga dos dois dissidentes, que foram enviados de novo para o complexo militar de Ramo Verde, nos arredores de Caracas.
De resto, o Governo não prestou mais esclarecimentos sobre detenções de opositores – como também não se pronunciou sobre a promessa da bancada maioritária da Mesa de Unidade Democrática (MUD) de manter a Assembleia Nacional em funcionamento, nem respondeu às declarações da procuradora-geral da República, Luisa Ortega, que classificou a posse da constituinte como “um crime de lesa humanidade” e acusou o Presidente Nicolás Maduro de ter “ambições ditatoriais”. Tal como os deputados da oposição, e os líderes de vários países latino-americanos, a magistrada – que se tornou a voz mais crítica a emergir das fileiras do chavismo – recusou reconhecer a legitimidade do novo órgão. “Não aceito a origem, o processo e o presumível resultado da imoral constituinte presidencial”, declarou
No tom desafiador e vernacular que o caracteriza, Nicolás Maduro só quis comentar a decisão da Administração dos Estados Unidos de incluir o seu nome na lista de oficiais sujeitos a sanções, manifestando orgulho por ser um “Presidente livre, independente e anti-imperialista, anti-racista e anti-colonialista”. “As decisões do Governo de Donald Trump contra mim expressam a sua impotência, o seu desespero e o seu ódio; expressam o carácter do magnata que é o imperador dos Estados Unidos”, interpretou Maduro, estimando que “meter-se com a Venezuela” virá a revelar-se o “erro mais grave” do Presidente americano.
Ao anunciar a medida, o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, descreveu o líder venezuelano como um “ditador” que “ignora a vontade dos venezuelanos”. O secretário de Estado, Rex Tillerson, referiu-se ao encarceramento de López e Ledezma como um desenvolvimento “muito alarmante”. “Não obedeço a ordens imperiais nem a governos estrangeiros. Podem congelar [os bens] o que lhes der na gana, a mim não me intimidam”, respondeu Nicolás Maduro, acrescentando que está a ser penalizado por ter “convocado um acto eleitoral único na história da América Latina” e garantindo que existem “dez milhões de venezuelanos dispostos a pegar em armas para defender a região”.
As últimas acções do regime para subjugar a oposição mereceram a censura das Nações Unidas, da Comissão e do Parlamento Europeu. Os embaixadores do Reino Unido, França, Espanha e México marcaram presença numa sessão da Assembleia Nacional em que foi condenada a criação da constituinte. Maduro agendou a tomada de posse da nova câmara plenipotenciária para esta quinta-feira. “Devem começar a governar na próxima semana”, disse.