Linguística forense: “Cada um de nós tem uma maneira única de escrever”
A PGR já a considera uma ferramenta que pode ser importante em algumas investigações. Na PJ ainda se acredita que precisa de dar provas. Afinal, o que pode fazer a linguística forense pela investigação de crimes?
Rui Sousa-Silva, professor auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, foi o primeiro linguista forense com luz verde para analisar casos em investigação pelo Gabinete Cibercrime da Procuradoria-Geral da República (PGR). Pediu para colaborar com a instituição, no âmbito de um estudo que estava a desenvolver. E a PGR aceitou. Até que ponto podia esta disciplina ser valiosa?
Foi entre 2014 e 2015. O objectivo desse “estudo-piloto”, como lhe chama a PGR, era analisar a capacidade da linguística para, por exemplo, perante dois textos publicados na Internet, esclarecer se o respectivo autor era a mesma pessoa. Para tal, o perito teve acesso a processos-crime que estavam pendentes no Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa (DIAP) — um sobre usurpação de direitos de autor (pirataria e partilha ilegal gratuita de conteúdos), outro de difamação e um outro ainda relacionado com injúrias.
O doutorado em Linguística Aplicada, com especialização em Linguística Forense, pela Aston University, no Reino Unido, faz questão de sublinhar a diferença entre linguística forense e a tradicional análise de “escrita manual”, que compara grafias - na sua forma, desenho e ligações –, reveladoras de pormenores em bilhetes e cartas manuscritas, e que se faz no Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária. Já um linguista forense, explica, “olha para o texto: para as palavras utilizadas e a sua ordem, construção das frases, pontuação, erros de ortografia”.
“A linguística forense é utilizada no auxílio à investigação policial, mas também como prova pericial. Uma das suas áreas fundamentais, nas ciências forenses, é a análise de autoria de documentos suspeitos manuscritos, mas sobretudo os incluídos em comunicações eletrónicas”, explica.
No Centro de Linguística da Universidade do Porto, onde desenvolve investigação rodeado de livros empilhados em estantes, deixa escapar, entusiasmado, que adora “que as pessoas comentam erros sistemáticos, como ‘comprimentos’ em vez de ‘cumprimentos’ na despedida de uma carta, por exemplo”. É uma “marca linguística” que, nota, pode ser crucial e levar a investigação até ao suspeito.
Tal como a personagem Sherlock Holmes, que dizia que “os pequenos detalhes são sempre os mais importantes”, Sousa-Silva também os aprecia, ao ponto de andar sempre com um kit carregado de cores de feltro, que usa para assinalar os marcadores linguísticos nos textos, como se fosse um arco-íris.
Baleia azul e terroristas
Há todo um manancial de crimes de assédio, ameaças, stalking e de perfis falsos nas redes sociais. “Vivemos na era das comunicações electrónicas.” E no cibercrime “as formas tradicionais de análise, como a escrita manual, para chegar ao autor” são de pouca utilidade, defende Sousa-Silva que também preside ao Colégio de Linguística Forense da Associação Portuguesa de Ciências Forenses.
Para investigar crimes ligados ao chamado jogo Baleia Azul, por exemplo, acredita que a linguística forense poderia ser valiosíssima. “Aqui a recolha do texto pode permitir identificar alguns padrões que sejam individualizantes e que possibilitem à polícia orientar a investigação em determinado sentido”. E até chegar a suspeitos.
“O princípio básico no qual assenta a linguística forense é o de que cada um de nós tem uma maneira única de escrever." Há também “padrões sociolinguísticos”, formas de falar, que permitem direccionar ou limitar a investigação a um determinado grupo de potenciais suspeitos.
Por estes dias, está a trabalhar num caso de plágio académico, a pedido do Ministério Público, sobre o qual não pode entrar em pormenores. Mas lamenta: “Até hoje, não fiz análise linguística forense para a polícia portuguesa." É que “em Portugal, não há muita tradição em contratar peritos nesta área” ao contrário do que acontecem em Inglaterra, onde os linguistas forenses conseguiram, por exemplo, chegar até os suspeitos do rapto de duas raparigas. Depois de terem desaparecido, estas continuavam a enviar mensagens de telemóvel a avisar que não queriam que os familiares as procurassem. Mas os peritos descobriram que o estilo de escrita das mensagens não era o delas, mas sim, consistente com o dos suspeitos.
Ainda assim, no âmbito do seu projecto de pós-doutoramento “Laboratório Linguístico Cibercrime: linguística forense (computacional) no combate à cibercriminalidade”, com apoio até 2018 da Fundação para Ciência e Tecnologia (FCT), o perito está agora a avançar para um segunda fase na colaboração com a PGR. Contempla “a análise de comunicações electrónicas, aparentemente banais, mas que possam ocultar significados potencialmente criminais”. Por exemplo, trocas de mensagens entre terroristas, suspeitos de tráfico humano, de pornografia e de aliciamento de menores através da internet que utilizam palavras como códigos. Vai estudar os significados dessa linguagem. Desde já, adverte que não acede a dados privados das pessoas, mas sim, a fóruns de discussão, por exemplo.
A sua passagem pelo Gabinete Cibercrime convenceu a PGR. Conseguiu demonstrar que “a linguagem pode servir como prova na resolução de um crime”, orgulha-se. Do relatório então feito, “conclui-se que a análise linguística é uma ferramenta que pode revestir-se de utilidade no âmbito de algumas investigações”, faz saber o gabinete Cibercrime em respostas ao PÚBLICO.
Ainda “em desenvolvimento”
Num dos casos pendentes no DIAP, nos quais trabalhou com a colaboração de um magistrado — um processo-crime de usurpação de direitos de autor —, pretendia-se saber se os autores de um website com conteúdos protegidos por direito de autor (filmes, séries, revistas e livros) eram os mesmos responsáveis por uma página no Facebook, que tinha a mesma designação. Nesta última, era anunciada a disponibilização de novos conteúdos no website. Feita a análise aos textos publicados em ambos os sítios, Sousa-Silva assinalou 26 marcadores linguísticos distintivos no estilo de escrita utilizado, como a utilização de letra minúscula em nomes próprios, a ausência de acentos onde deveria haver, o uso de vírgula sem espaço entre duas palavras e de expressões de português do Brasil.
Concluiu que “havia elevada probabilidade de os conjuntos de textos publicados no website e no Facebook serem do mesmo autor”. Também eram escritos por mais do que uma pessoa nos mesmos sítios, “porque havia flutuações na escrita”.
Sousa-Silva, que em Setembro será um dos docentes, com outros de faculdades de Letras e de Direito, de um curso online de especialização de linguística forense, dá um último exemplo. A linguística forense também pode ser utilizada num cenário de aparente suicídio. Imagine-se que há suspeita de que uma nota de suicídio não foi escrita pela pessoa encontrada morta, exemplifica. Nesses casos, o que se faz é comparar o estilo de escrita com documentos dessa mesma pessoa para perceber se foi ela a escrever ou não, ou se o fez coagida. No caso de haver suspeitos, o perito compara ainda a nota com textos destes.
O director do Laboratório de Polícia Científica da PJ, Carlos Farinha, admite, como a PGR, que em determinadas situações a linguística forense possa contribuir para a percepção de factos e “conferir valor acrescentado para a descoberta da verdade”. Mas, ressalva, “trata-se de uma disciplina ainda em desenvolvimento no plano forense”.
“Só a validação dos métodos e dos resultados, de acordo com critérios científicos, mas também jurídico-processuais, a poderá vir a equiparar a outras disciplinas menos recentes”, como as perícias em escrita manual, balística, drogas e toxicologia, documentos, impressões digitais, interpretação de manchas de sangue, prossegue Carlos Farinha.
Novos métodos
De resto, outras técnicas estão a ser aprofundadas na área da investigação criminal. O responsável pelo Laboratório de Polícia Científica dá um exemplo: em breve vão passar a fazer-se, no laboratório da PJ, perícias de áudio e de som “com conhecimentos mais validados” do que até agora. O laboratório tem novos equipamentos, na nova sede, para este tipo de competências.
O objectivo é responder ao aumento de solicitações, nos dois últimos meses, no sistema de Justiça, para identificação de intervenientes, através da voz, e que andam na ordem de uma por semana. E sobretudo relacionadas com o aumento dos contratos telefónicos, por exemplo, com as operadoras telefónicas e de televisão por cabo, ou de gás e electricidade. “Nestas situações, a adesão contratual fica gravada e, em caso de processo, se surgirem dúvidas, pode ser necessário fazer a perícia de áudio e som para identificação de intervenientes, através da voz”, explica o director do Laboratório de Polícia Científica. Imagine-se uma situação de um cliente de uma operadora que garante que não foi ele quem celebrou o contrato ao telefone e depois percebe-se que e a voz era mesmo a dele. “Esta perícia pode servir depois como prova em caso de processo e prestar um contributo clarificador e relevante”. O laboratório só opera em contexto de processo cível ou crime e “quem pede as perícias são as autoridades judiciais ou policiais”.
A perícia de áudio e som é aplicável à generalidade das situações em que existam sons gravados, sobretudo ao nível da voz. Por áudio entenda-se voz e por som a clarificação de um som, por exemplo, uma travagem, um disparo. Imagine-se, por exemplo, que o sistema de segurança de uma casa gravou imagens e um som que parece ser de um tiro. Havendo dúvidas, é importante confirmar se o é e se é de arma ligeira ou outra.
Peritos de áudio e som, de cerca de 30 laboratórios europeus, vão-se reunir, em Setembro, em Lisboa. “Este encontro anual do grupo vai servir para partilha de conhecimento e experiências, definição e optimização de manuais de boas práticas”. Assim como, adianta, para “a realização de testes de proficiência que permitam aferir os resultados obtidos, por cada um dos laboratórios congéneres participantes”.