Miles Davis como sombra de Jeanne Moreau

Em 1957, aproveitando a sua passagem por Paris, Miles Davis foi chamado a registar a sua música como banda sonora para Fim-de-Semana no Ascensor, num sublinhar do desejo e da sufocação ferventes na personagem interpretada pela actriz francesa.

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Jeanne Moreau em 1957 com o músico Miles Davis (1926 - 1991) RDA/Getty Images

Há qualquer coisa de muito sugestivo, ainda que encenado, nas fotografias (duas em particular) que acompanham as reedições em CD da banda sonora de Ascenseur pour l’Échafaud (Fim-de-Semana no Ascensor): Jeanne Moreau finge experimentar a trompete de Miles, ajudada pelo músico, olhos dele fixados na aproximação da boca dela à embocadura do instrumento – esqueça-se por um segundo que há um fotógrafo na sala e a imagem é de uma fortíssima energia feita de sedução mútua; numa outra foto, a actriz desvia o cabelo, prende uma mecha com a mão direita, e deixa o caminho livre para Miles encostar a trompete ao seu ouvido esquerdo, como se soprasse a música directamente para ela, apenas para ela.

A música de Ascenseur pour l’Échafaud ouve-se como se fosse empurrada por um tom não apenas de mistério e melancolia, mas também de sensualidade e desejo – Boris Vian chamar-lhe-ia “um clima sedutor e trágico”. Dir-se-ia que o som do quinteto comandado por Miles funciona como uma resposta ao sopro cálido que é a voz de Jeanne Moreau, quando a sua personagem Florence segreda a Julien ao telefone “Je t’attends, je n’attends que toi” ou quando calcorreia as ruas de Paris em vão em busca do seu amante e solta um dorido e quebrado “Julien, je t’aurai cherché partout”.

O encontro de Miles com o realizador Louis Malle é um acidente feliz, ao qual se deve uma das bandas sonoras mais extraordinárias que o jazz foi chamado a ilustrar. Miles Davis chegara a Paris em Novembro de 1957 para uma digressão de três semanas montada por Marcel Romano, aliciado também pelo tempo que poderia passar com a actriz e cantora Juliette Gréco – na sua autobiografia, o trompetista confessa que terá sido neste período que ambos concluíram que seriam “sempre apenas amantes e grandes amigos”.

Em França, Miles Davis afastava-se de um período especialmente profícuo e que ficaria na história com a impressionante experiência do seu primeiro quinteto – montado em 1955 e desmembrado pouco depois, a tempo, ainda assim, de registar em abundância essa formação mítica – e teria como companhia para os concertos europeus uma banda composta por três músicos franceses e o baterista norte-americano Kenny Clarke. Sem grande compromisso que não fosse o de tocar e de se reencontrar com Gréco, Miles entusiasmou-se com a proposta de registar a banda sonora para o filme de Malle, por sugestão do assistente de realização Jean-Paul Rappenau.

Após um primeiro visionamento privado, em que, segundo Romano, o músico pediu explicações sobre o enredo e a relação entre as personagens, tomando notas daquilo que lhe era passado, Miles aproveitou a residência durante uma semana no Club St. Germain para pedir que lhe fosse instalado um piano no quarto de hotel, onde rascunhou as ideias a explorar na gravação de Ascenseur. Os músicos, recordaria o contrabaixista Pierre Michelot, só mais tarde descobriram que Miles já assistira ao filme e levava consigo esboços de ideias que pretendia explorar no estúdio Le Poste Parisien – das poucas instruções concretas para o grupo foi a adopção dos acordes do standard Sweet Georgia Brown para o tema Sur l’autoroute.

A sessão única decorreu durante a noite de 4 de Dezembro, no final dos afazeres de Miles, e de acordo com a descrição de Boris Vian decorreu numa “atmosfera muito descontraída”, com Jeanne Moreau, “ de forma encantadora, a receber músicos e técnicos num bar improvisado”. “Louis Malle”, escrevia ainda Vian, “estava presente e tentava extrair de Miles tudo quanto este quisesse acrescentar às imagens.” Depois Miles fez aquilo em que se tornaria um mestre ímpar, guardando a intenção total para si, partilhando com os músicos apenas o bastante para deles conseguir quanto pretendia.

Diante das cenas preparadas por Malle, o quinteto improvisou uma música que se inspira no frémito próprio de um film noir que inclui um assassínio e as inevitáveis fugas e perseguições, mas cuja marca mais profunda é aquela que acompanha o rosto e os passos de Jeanne Moreau. E, desde o genérico inicial, desde o telefonema em que Florence e Julien trocam juras de amor na impossibilidade de pousarem as mãos nos corpos um do outro, Miles torna-se quase uma sombra de Florence – do seu desejo, da sua sufocação a gritar por liberdade e do seu coração amarrotado.

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