Assembleia constituinte é o "tudo ou nada" do Governo de Maduro

"Contra ventos e marés", o Presidente da Venezuela decidiu avançar com a votação para escolher os 545 delegados que vão reescrever a Constituição e mudar o modelo do Estado. Para a oposição, e a comunidade internacional, é a hora zero da ditadura.

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Nicolas Maduro está a fazer o caminho para a autocracia Carlos Garcias Rawlins/REUTERS

Será que é hoje que cai a gota de água que faz transbordar o copo na Venezuela? Quando avançou com a ideia de uma assembleia constituinte, para pacificar o país e “aperfeiçoar” a Magna Carta do chavismo, o Presidente Nicolás Maduro apenas queria ganhar tempo para se recompor após a eclosão de novos protestos de rua. Mas a sua decisão acabou por fazer subir a parada para a oposição, que lançou uma “ofensiva existencial” contra o regime. A votação deste domingo tornou-se a manobra mais arriscada de Maduro – e provavelmente, num lance decisivo para o futuro da democracia na Venezuela.

Pressionado pelos milhares que diariamente desafiam o regime na rua, e ameaçado pela comunidade internacional, que acena com sanções e embargos, isolamento e expulsões, o Presidente recusou corrigir a mão e rever o plano. Ao insistir que a constituinte avançará, “contra ventos e marés, chuva, trovoada e relâmpagos”, ficou sem escapatória. Maduro sofrerá uma humilhação se a participação eleitoral for baixa, mas não retirará nenhuma consequência política dessa derrota.

A oposição usou todos os trunfos para tentar travar o processo que refuta como ilegítimo e ilegal. Depois de três meses de protestos diários contra o Governo (que fizeram mais de cem mortos), avançou com uma consulta popular sobre a constituinte com mais de 7,5 milhões de participantes e parou o país em duas greves gerais, de 24 e 48 horas. O apelo ao boicote da votação, este domingo, converteu-se numa nova chamada para as ruas.

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"Vistam-se de branco, ou enrolem-se na bandeira, e venham para a rua", pede o opositor Henrique Capriles Ueslei Marcelino/REUTERS

“Convocamos o povo que quer a mudança para concentrações nas principais vias e artérias das cidades de todo o país”, anunciou no sábado o governador do estado de Miranda e líder do partido Primero Justicia, Henrique Capriles, que nas presidenciais de 2013 quase derrotou Nicolás Maduro. “Vistam-se de branco, ou enrolem-se na bandeira nacional, e venham participar neste protesto pacífico, democrático e constitucional, que mostra a nossa rejeição à constituinte.”

A mobilização, garantiu Capriles e os restantes líderes da coligação Mesa da Unidade Democrática (MUD), vai prosseguir após a votação. “Podemos esquecer a ideia de que o Governo vai suspender este processo [um rumor que circulou nos últimos dias]. Devemos preparar-nos para aprofundar a luta”, declarou o vice-presidente da Assembleia Nacional, Freddy Guevara. “A luta continua na segunda-feira, continua na terça-feira, continua todos os dias. Não podemos ser pessimistas”, acrescentou Capriles.

Chegou a autocracia

Mas o pessimismo é a nota dominante entre os analistas políticos e os observadores internacionais. São quase unânimes em considerar que ao dar posse à Assembleia Constituinte, o Presidente estará a promover uma mudança na ordem institucional que altera de forma fundamental a natureza do regime: a Venezuela abandonará os procedimentos democráticos e resvalará para um sistema autocrático, cujo governo é sustentado pelo aparelho militar.

“Esta é a cartada definitiva, o tudo ou nada, de um Governo que para se manter no poder necessita de suspender a democracia”, resumia à AFP a analista Colette Capriles, da Universidade Simón Bolívar, em Caracas.

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A oposição apela a cortes de estradas já no domingo Andres Martinez Casares/REUTERS

Da polémica eleição sairão os 545 delegados que Nicolás Maduro encarregou de redigir um novo texto fundamental, que aprofunde o projecto socialista bolivariano vertido na Constituição aprovada por Hugo Chávez, em 1999. Esse documento, no seu artigo 347.º, prevê a possibilidade de “o povo, no exercício do seu poder, convocar uma Assembleia Nacional Constituinte com o objectivo de transformar o Estado, criar um novo ordenamento jurídico e redigir uma nova Constituição”. Maduro diz que o trabalho dos constituintes será encontrar um novo modelo de funcionamento do Estado e novas competências para o sistema de justiça.

Para a oposição, trata-se de “legalizar” um auto-golpe para estabelecer uma ditadura de partido único e carácter militar. Dos seis mil candidatos autorizados pelo Conselho Nacional Eleitoral, são vários os militantes do PSUV ou membros de organizações chavistas: o irmão de Hugo Chávez, a mulher de Nicolás Maduro e o número dois do chavismo, Diosdado Cabello. Mas não há um único simpatizante da oposição.

Todas as diligências para mediar a crise e suspender o processo constituinte falharam. Esbarraram na indisponibilidade dos dois lados para o diálogo. Com as posições extremadas, a comunidade internacional já começa a agir como se a guerra civil na Venezuela seja inevitável: várias companhias aéreas internacionais anunciaram o fim das suas rotas para o país; os serviços diplomáticos retiraram o pessoal em funções não-essenciais e organizações multilaterais, das Nações Unidas à Organização dos Estados Americanos e União Europeia, começaram a preparar planos de contingência para a crise.

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