Conselhos inúteis para reaprender a falar
A rígida adesão ao vocabulário do politicamente correto pode ser uma nova modalidade de policiamento moral.
Chega-me dia sim, dia não propaganda para frequentar workshops com um impressionante leque de propostas e tendências. Nos últimos tempos estive tentado — e só resisti porque não sei meter o cartão de crédito nos pagamentos online — a inscrever-me em formações para ser especialista em cozinha tailandesa, mental coacher, hipnoterapeuta, aprender os segredos do emagrecimento com a dieta paleolítica — logo eu, que só como dieta mediterrânica, principalmente na parte da orelheira. Poderia continuar a desfiar workshops, por exemplo de apicultura, de erbanária tradicional, de técnicas faciais anti-ruga ou de escrita criativa. Considero este último o mais perigoso, pelo risco de ficarmos nas mãos de algum dos escritores a metro que medem o êxito pelos “gosto” no face book. Só não vi ainda – e era logo nesse que queria mesmo inscrever-me — um workshop de iniciação ao vocabulário do politicamente correto.
Claro que é algo que podemos ir aprendendo sozinhos, no são convívio com quem está num grau avançado desse modo de falar que não agride ninguém e em que todos se salvam. Já consigo, por exemplo, dizer muitos mais vocábulos em inglês, que são menos carregados ideologicamente dada a aparência técnico-científica que assumem só pelo facto de, ao serem ingleses, terem a fortuna de ser pronunciados em inglês. Também já consegui restringir a palavra “preto” ao facto objetivo e indiscutível de me referir à cor negra ou de dizer “cigano” quando se tratar do facto objetivo e indiscutível de me estar a referir efetivamente a alguém que é cigano de etnia. Também já bani palavras aparentemente mais insondáveis no seu despropósito, como “bacalhau” ou “zequinha”. Ao princípio custa, mas depois habituamo-nos — porque a linguagem é um hábito e podemos habituar-nos a falar doutro modo comportando-nos exatamente na mesma.
Quando nasci ainda os vigilantes do salazarismo riscavam os textos dos criadores com lápis azul. Depois da revolução, levei algum tempo a compreender que podia falar à vontade sem ter de ser repreendido. Comecei a ganhar gosto pelo falar e acreditei no país que repetiam diariamente que era livre. Iniciei-me por essa altura numa carreira poética relativamente insípida até ao momento e camuflada num prudente pseudónimo, mas em que incorporei vernáculo como “poio”, “puta”, “queca”, “velhas”, “trissómicos”. Sei o quanto arrisco ao dizer isto agora — provavelmente a morrer em definitivo enquanto poeta que mal chegou a ser.
Também eu, em tempos, batalhei pela linguagem — porque o dizer, a forma como se diz, não se limita a falar da coisa, mas tem poder de lhe ir conformando os contornos. Era por esse tempo o tempo de abrir as portas das sacristias e das casas burguesas virtuosas e dizer o quanto a contenção do verbo constrangia o agir. Era preciso que a linguagem rasgasse o que era pântano, bolor e tédio. Mas o passar do tempo e dos acontecimentos reservava-me outra lição: nem sempre os que melhor falam são os que melhor gerem as suas atitudes quando são chamados a mandar ou a intervir no espaço público.
Fui começando a reparar nos que muito falam e, no falar, nos corrigem no modo como falamos, porque são eles os donos do vocabulário com que devemos dizer a realidade. Fui reparando, à medida que por mim passavam múltiplos e diversos faladores do politicamente correto, que aquela sabedoria antiga do “olha pró que eu digo, não olhes pró que eu faço” enxameia a nossa vida pública. E fez-me o tempo saber que, mais do que o modo como falo quando falo do outro, conta para ele o respeito com que se sente tratado na relação. E isto não o trazem só as palavras, nem sobretudo estas: trá-lo a empatia, trá-lo o gosto de gostar genuinamente dos outros. E não me venham dizer que “dos outros mesmo quando são diferentes” — porque diferentes somos todos, ando por cá há mais de meio século e ainda não vi duas pessoas iguais e já sabia disto antes da chegada da plêiade de pregadores da diferença, das diversidades cultural e/ou funcional, do multiculturalismo, do multigénero e da inclusão.
Insistir nas formas do politicamente correto pode ser um equivalente contemporâneo do ensinar a comer à mesa de faca e garfo, não limpar a beiça às costas da mão e não cuspir para o chão. E é importante, porque é melhor comer a partir de um certo número de códigos de civilidade. Mas é mais importante saber se comemos todos do que andar obcecado com o modo como comemos. E pode a rígida adesão ao vocabulário do politicamente correto ser uma nova modalidade de policiamento moral, uma reintrodução do pudor que a tanto custo vencemos ainda há poucas décadas. Pode bem ser a pantomima que ilude o essencial — porque falar é fácil, falar bem para muitos é muito fácil, falar politicamente correto pode até ser facílimo. O mais difícil vem depois, quando temos de lidar com os que não pensam como nós — e às vezes nem sequer são politicamente corretos... E se, à força de querer instalar a cidadania plena a toda a força, estivéssemos a engendrar novas contenções e a caucionar novas censuras do verbo?
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico