As A-Wa tiram as canções iemenitas da cozinha
Na quinta-feira, a noite no Castelo de Sines encerra com a pop emancipada das irmãs A-Wa, um fenómeno em Israel e nos países árabes.
Os avós de Tair, Liron e Tagel Haim (não confundir com as outras três irmãs Haim do mundo da música, essas nascidas na Califórnia) mudaram-se do Iémen para Israel no início da década de 1950, à semelhança do que aconteceu com outras populações que passaram a habitar o recém-criado estado judeu. Nascidas numa pequena povoação no deserto do Vale de Arava, no sul do país, as irmãs viajavam com frequência para casa dos avós em períodos de férias ou de celebrações familiares.
Ainda que os seus ascendentes falassem quase sempre em hebraico, numa prática adoptada sobretudo como elemento de integração, Tair Haim conta ao Ípsilon que se recorda de surpreender “o avô a rezar, soando como se estivesse a cantar, e a avó a entoar melodias tradicionais iemenitas enquanto cozinhava para toda a família”. “E nas festas víamos também a avó cantar com as outras mulheres, tocarem percussão e todos praticarem, em círculos, danças tradicionais do Iémen. Foi uma experiência muito tribal para nós; como tínhamos ouvidos muito musicais sentíamo-nos atraídas por aquilo e queríamos aprender mais.” Estes lampejos de acesso a um passado de um país e de uma vida que desconheciam haviam de cativá-las com uma tal intensidade que boa parte do seu tempo naquelas ocasiões era gasta a tentar espremer histórias dos avós.
“Ao crescermos numa pequena localidade do deserto israelita, e numa altura em que não havia reality shows nem ninguém famoso nas redondezas, foi como se a música nos tivesse escolhido”, diz Tair Haim sobre a forma pouco pensada e ambiciosa como as três irmãs começaram a fazer música. Todas estudaram voz – as melodias e harmonias vocais que ouviam às cantoras de jazz e da Motown –, piano e dança, todas foram enchendo as cabeças com a música iemenita, grega, espanhola e cigana que se ouvia em casa, e com a colecção de discos do pai que ia dos Pink Floyd aos Beach Boys e aos Deep Purple. Aos poucos, a entrada da MTV nas suas vidas sobrepôs a estas referências um cardápio de hip-hop e pop que expandiu consideravelmente o seu mundo.
Tudo isto acaba por se encaixar na pop desempoeirada que as A-Wa patenteiam no álbum Habib Galbi, e que as tornou um fenómeno em Israel e nos países árabes. Talvez porque “sendo a música iemenita muito baseada no ritmo” sentiram-na “muito próxima do reggae e do hip-hop” e essas ligações estabeleceram-se sem qualquer atrito. Mas também porque as irmãs foram fiéis ao plano de procurar o produtor certo – “alguém que compreendesse ritmos e valorizasse a nossa história e a maneira como queríamos levar esta influência iemenita para o palco”, define Tair – e não embarcaram na primeira de muitas propostas de colaboração que tiveram desde que partilharam as primeiras músicas na internet. Esse produtor acabou por ser Tomer Yosef, o homem por detrás do projecto Balkan Beat Box, ele próprio obreiro de uma síntese entre hip-hop, electrónica, música do Médio Oriente e dos Balcãs.
Assim que o primeiro produto dessa parceria, o vídeo de Habib Galbi, foi disponibilizado, acendeu-se o rastilho que faria das A-Wa as primeiras artistas a alcançarem o topo de vendas em Israel com uma canção em árabe, ao mesmo tempo que a canção se disseminava pelas rádios e pelos casamentos do mundo muçulmano. E sempre levando consigo, a cada momento, uma ideia de emancipação feminina que começa pelo facto de tirarem estas melodias do trabalho doméstico em que eram tradicionalmente cantadas e as colocarem nos grandes palcos. “Foram as mulheres que, sem o saber, criaram este folclore”, argumenta Tair. “Esta colecção de canções belíssimas era o escape delas, a sua forma de contar histórias quando não havia rádios nem jornais naquela altura. Eram mulheres que se casavam cedo de mais e se expressam através desta música. O que estamos agora a dizer é que não devem ficar fechadas na cozinha e a criar os filhos.”
Essa aura de libertação encontra-se também no vídeo de Habib Galbi. A submissão inicial é colocada de lado quando vestem um hijab cor-de-rosa, “símbolo de optimismo e amor universal”, e dançam ao lado dos homens. “Libertamo-nos em nome de todas as mulheres que não puderam fazê-lo e que lutaram durante anos para chegarmos a este ponto.” Por isso mesmo, assumem o reportório tradicional iemenita, mas enchem-no de uma contemporaneidade tão afirmativa quanto o grito A-wa, interjeição de calão árabe que é como um “sim” parecido a um “alright”, bradado para animar o povo.